segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Papa e o Grande Líder, crónica de sábado, no Diário de Notícias




Nota: esta não é uma crónica sobre futebol ou clubes, que nada me interessam. 

Pinto da Costa foi recebido por José Eduardo dos Santos. Uns terão pensado em Lex Luthor e Darth Vader, outros viram o Papa e o Grande Líder. Tanto o presidente do FC Porto como o chefe de Estado angolano têm longos e controversos reinados e uma imagem que oscila entre o salvador e o vilão. Julgo que todos os portugueses poderiam oferecer uma opinião sobre Pinto da Costa – a sua imagem tem pontos comuns seja qual for o lado da barricada: um homem de sucesso, que transformou um clube de bairro numa marca mundial, que ganhou tudo, e capaz de declamar poemas com o fulgor romântico do século XIX. Mas tem também a imagem de um homem cujos métodos levantam suspeitas, que usou metáforas simplistas em escutas, alguém que pratica uma retórica infantil, maniqueísta, incentivadora do ódio (os mouros) com fervor propagandista e esperteza estratégica.
Interessa-me o que essa imagem de Pinto da Costa representa (seja ela correspondente à verdade ou não) no imaginário do país, mas também o que diz sobre nós, porque demasiadas vezes ouvi adeptos de outros clubes dizerem que não se importavam de ter um presidente que agisse fora da lei, prepotente, provinciano e bélico, desde que ganhasse os títulos que o FC Porto conseguiu nos últimos 30 anos.
O futebol é uma reserva onde são permitidos fanatismos, burrice e engano – desde que se marque o penálti a favor da nossa equipa. Suspendem-se os princípios e aceita-se que apoiemos algo desonesto com a desculpa que precisamos de paixões e catarse. Tal como parece normal que a imprensa reproduza, com dramatismo e entusiasmo, as baboseira dos dirigentes, sublinhando sempre, mas sempre, a ironia quando se trata de Pinto da Costa. Talvez, em tempos. Hoje, essa ironia tem as qualidades cómicas e a pertinência dos Malucos do Riso.
Num texto, após a visita a Luanda, Pinto da Costa vitimizava-se, exultava as autoridades africanas e, claro, ironizava: “Sonhei que (em Angola) a imprensa se referia com grande respeito ao FC Porto (...), que altas individualidades se tinham ido despedir da nossa comitiva (...) Mas (...) tudo era passado e aterrara num Portugal democrático em que se detém um primeiro-ministro ao aterrar no seu país.”
Chegado da impoluta e livre Angola, Pinto da Costa deve ter sentido que as suas liberdades ficavam brutamente limitadas ao passar a alfândega de um país onde sempre foi vítima e jamais teve reconhecimento, impunidade ou vénias institucionais.
José Eduardo dos Santos é presidente de Angola desde 1979. Chefes de Estado seus contemporâneos que estão (ou estiveram) no poder durante décadas: Ali Khamenei, Irão; Robert Mugabé, Zimbabwé; Teodoro Mbaso, Guiné Equatorial; Ali Saleh, Iémen.
O progresso e a melhoria de vida de um povo não são apenas as gruas e os arranha-céus que Pinto da Costa elogiou em Luanda, contrapondo a pasmaceira de Portugal, onde não ele lamenta não ver gruas nenhumas. O país africano é gerido como uma oligarquia cleptocrata, em que as oportunidades e a riqueza são distribuídas entre militares, burocratas e a família do presidente. As histórias de ostentação e esbanjamento multiplicam-se há anos. O presidente pode mostrar estradas, pontes e prédios altos, mas 70% da população sobrevive com dois dólares por dia e o país ocupa o 161º lugar (em 176) no índice de perceção de corrupção da Transparência Internacional.
                Em 2010, entrevistei um angolano que, fugido de Angola, dizia ter sido ameaçado de morte. Luís Araújo pertencia à SOS Habitat, que queria impedir a destruição de milhares de casas de gente pobre para se construírem condomínios de luxo. Dizia: “(A elite governamental) serve-se bem da hierarquia e do culto do chefe para preservar o poder. E é com essa gente que se quer construir uma democracia? Isso é querer que um jindungueiro dê laranjas doces.”
Dias depois de Pinto da Costa ter sido tratado em Luanda como acha que não o tratam em Portugal, Laurinda Gouveia, que participava num protesto contra o governo angolano, foi detida, agredida (com as mãos algemadas) e questionada: “Porquê tanto ódio contra o presidente?”
Que não existe liberdade de expressão em Angola não é novidade, mas, no último ano, dois ex jornalistas do i disseram-me que, nesse diário, não se podiam escrever textos que beliscassem os interesses angolanos. A ser verdade, e acredito que seja, é grave. Não estou certo de que os capitães de Abril tivessem feito uma revolução a pensar no futuro da liberdade de expressão em África, mas foi o golpe em Lisboa que despoletou a independência de Angola e, esperava-se, a democracia angolana. Não deixa de ser perversamente cómico que uma empresa de comunicação angolana, proprietária do i, censure um jornal português e nos faça recuar 40 anos.

Consta que o realizador John Ford, quando confrontado com algo inequivocamente errado, tinha apenas um argumento, que lhe saía das entranhas: “Somethings are just wrong.” Foi nessa frase que pensei diante da fotografia do presidente do FC Porto com Eduardo dos Santos e do título: “Angolanos elogiam Pinto da Costa e dizem que é exemplo a seguir.” 

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