segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Portugal por um canudo




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Sábado de manhã, bem cedo, corri com a minha cadela, pelo calçadão, e depois tomei um sumo de tangerina. O sol da primavera carioca atravessava tudo com um brilho cristalino. Era um dia bonito. Cheguei a casa e abri a página online deste jornal, ficando a conhecer a detenção de José Sócrates e iniciando de imediato, como a maioria dos portugueses (imagino), um período intensivo de consumo de notícias sobre o caso. No entanto, porque vivo a oito mil quilómetros de Portugal, a minha perceção do que se passa é constrita pelo canudo da internet – jornais, telejornais, redes sociais etc. E, desligada a conexão, regresso ao mundo que, de facto, me rodeia: o Rio de Janeiro – seja na sua beleza praiana e solar ou nos seus problemas ancestrais e endémicos, que fazem as chagas de Portugal parecer arranhões. Não é que a detenção de um ex-primeiro-ministro do meu país não seja de primordial importância, ainda mais se tivermos em conta a personalidade em questão e todo o simbolismo do seu legado e da sua prisão, mas, com um oceano pelo meio, e recebendo a informação através da internet, esta semana revelou-me, como já acontecera antes, um país novelesco e cómico, passionalmente palavroso, em que o ciclo de notícias de 24 horas parece desenrolar-se como um reality show.

2
Os diretos de TV a encher chouriços são ingratos para os jornalistas. A voracidade da informação resulta em redundância – repetem-se as mesmas coisas vezes infinitas – e desemboca numa obsessão com o nada, como o repórter que insistia na palavra “movimentações” e, no meio de tanta tautologia e gaguez, exultou de alívio ao ver um carro aproximando-se da prisão onde, eventualmente, ficaria Sócrates – não ficou. Além da obsessão com as “movimentações” de veículos, há também uma fome de detalhes gastronómicos – as pausas para almoço dos advogados, o cozido à portuguesa com que o ex-primeiro ministro se estreou na cadeia e o menu do restaurante onde almoçava em Paris. Depois, claro, há os maluquinhos da celebridade instantânea, que se colam aos repórteres, e sabotam o seu trabalho, para aparecer na TV. Se é para termos entretenimento informativo non stop, então gostaria que um desses jornalistas tivesse a iniciativa de pedir licença aos telespectadores e, fazendo uma pausa, fosse espetar uma galheta de professor da quarta classe antiga numa dessas figuras (estou sozinho nesta pulsão?).

3
No Portugal visto por um canudo, julgo encontrar um país que quer mais justiça do que vingança (posso estar enganado), ainda que, se alguma coisa se conhece dos homens, seja ingénuo fingir que uma condenação não providenciaria o primário prazer do ajuste de contas – com Sócrates e com todos os podres do regime nos últimos 40 anos. Outros protagonistas da política poderiam certamente estar no lugar de Sócrates, dificilmente outro representaria tão bem o papel do cordeiro de deus que, sacrificado, tira o pecado do mundo. Pode ser lamentável, injusta, exagerada, mas é uma pulsão de purga, previsivelmente humana e explicada por Clemenza a Michael Corleone, em “O Padrinho”: “É provável que as outras famílias se juntem, contra nós. Está tudo bem. Estas coisas têm que acontecer. É uma maneira do nos livrarmos do mau sangue”.  

4
Prefiro, sem hesitar, que um homem inocente custe a seriedade e o prestígio da Justiça do que condenar quem não tem culpa para salvar a cara do sistema. Respeito a presunção de inocência como respeito a liberdade de expressão. Mário Soares, que lutou e se sacrificou para que tivéssemos ambas, escolheu achar que Sócrates é alvo de uma “infâmia”, de um esquema organizado por “malandros”, e, portanto, inocente. Também disse que todo o processo era uma “bandalha”, exercendo o seu direito de liberdade de expressão. É verdade que quem escreve nos jornais, como eu, deverá mostrar um cuidado que não se tem com os amigos, falando sobre o tema, ao ritmo da cerveja. Mas isso não implica que eu tenha de anular o meu pensamento dedutivo, ainda que saiba que ele não substitui nem é mais válido do que o tão mencionado “regular curso da justiça”.

5
Esta semana, usando o tal pensamento dedutivo e um pouco de imaginação, pensei no escritor John Le Carré a ler os jornais e a anotar os primeiros apontamentos para um romance: “Primeiro-ministro, estudante de filosofia em Paris. Amigo de Hugo Chávez. Empresa construtora com negócios na Venezuela (onde trabalha um amigo de infância do primeiro-ministro, com uma conta de X milhões, na Suíça). Farmacêutica com negócios na América do Sul. Um super juiz de cognome Herói dos Tabloides. Epígrafe do livro – frase do protagonista: “A prepotência atraiçoa o prepotente”
              Título provisório: Cicuta.

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