terça-feira, 25 de novembro de 2014

Dança da solidão - crónica publicada no Diário de Notícias




Retrato de rapariga

Está sentada a meu lado, bonita, jovem, um piercing no nariz. Passam as estações de metro e ela não tira os olhos do reflexo do seu rosto no telemóvel – não se trata de um espelho, mas da câmara que serve para ensaiar a sua beleza. O comboio lasca a escuridão das entranhas do Rio, e ela prossegue, agora fazendo dezenas de selfies – beicinho e olhos de eyeliner. No resto do vagão, mais pessoas olham para os seus insetos eletrónicos, mantendo contacto com o mundo exterior, teclando para prosseguirem sempre presentes, para existirem continuamente diante de uma audiência que não veem.   
                Ninguém quer estar sozinho, o cérebro liberto, um minuto de sossego. A promoção permanente do eu tornou-se compulsiva. Tudo o que fazemos, pensamos ou fotografamos é suscetível de nos engrandecer se ampliado no éter do ciberespaço – uma patética ilusão de eternidade e de autoimportância. Esse egocentrismo e essa alienação impedem, por exemplo, o entendimento do que deveria ser tão óbvio: usar o telefone enquanto conduzimos implica o risco da própria morte ou de matar alguém. No entanto, nem a possibilidade de morrermos impede a burrice de teclar ao volante.


Lições de um comediante ruivo

Louis C.K., humorista norte-americano, diz que as suas filhas pequenas não têm telemóveis porque ele os considera tóxicos, viciantes, sabotadores da empatia e das relações com os outros – quantas vezes o nosso interlocutor olha para o aparelho e agita os dedos como pernas de centopeia em vez de nos prestar atenção?     
                “Precisamos da habilidade de estar sozinhos, apenas estar, sem fazer outra coisa ao mesmo tempo. Foi isso que os telemóveis nos roubaram, porque agora queremos saber o que se passa a todo o momento.” Numa entrevista, o comediante contou que sentiu-se melancólico ao ouvir Bruce Springsteen na rádio do carro. Pensou pegar no telefone, postar o que sentia, enviar uma mensagem, mas concluiu: “Não lhe pegues, fica triste, deixa que a tristeza venha e te atropele como um camião.” Parou o carro, chorou muito. “Há beleza e poesia na tristeza. Estava feliz por me ter sentido triste. Depois do choro há uma felicidade, temos anticorpos para a tristeza, é uma espécie de trip.”
                Hoje, impedimos a plenitude das emoções humanas porque mitigamos e filtramos tudo com os telefones, os computadores, a incessante necessidade de uma conexão. “Nunca nos sentimos completamente tristes ou felizes”, diz Louis C.K., “apenas contentes com os produtos que temos”.

  
Os escravizados

A velocidade da vida não está em sintonia com a rapidez da internet. Não falo do quotidiano, também acelerado, mas do arco da existência – a dor, a superação, a perda, as epifanias, a derrota, o processamento de tudo aquilo que passa por nós e não pode ser medido em likes ou bytes. Talvez o ofício de escritor e editor me tenha ajudado a entender a discrepância entre a velocidade fragmentada a que funcionam hoje os nossos cérebros e o movimento de rotação da existência. Um livro, para ser pensado, escrito e editado, precisa de tempo e paciência. O aceleramento do processo, sem ponderação, trabalho e amadurecimento, deixa os livros aquém do que poderiam ser. E é isso que julgo que acontece hoje com as nossas vidas – ficamos aquém, nem completamente felizes, nem completamente tristes.
`              Num jantar de grupo há sempre o clube do iPhone. Tenho vários amigos que não se sentam na retrete sem um tablet que os distraia. Nos pontos de ônibus ou na fila do banco parece que já ninguém consegue apenas esperar. Os momentos a sós são escassos – falta tempo para interpretar, ponderar e sentir sem cuidados paliativos.
(Mais de metade dos livros que leio são digitais. Oiço música no Spotify. Vejo TV na internet. Sou assinante de e-papers e tenho um smartphone – mas só ligo a internet em caso de necessidade, o que é raro, e o aparelho fica muitas vezes desaparecido sem que lhe preste atenção, porque não me apetece, nem sinto a obrigação, de estar sempre disponível ou visível. Não estou a par dos temas do dia no Facebook e nem por isso sinto que esteja em falta ou a perder algo importante.)
Não sou tão velho para renunciar a tecnologia nem tão controlador que tenha de decretar os hábitos dos outros. Mas lamento o alheamento constante e a falta de concentração por mais de dois minutos, a incapacidade do silêncio, do sossego, da divagação, de não fazer nada, ou essa ideia de que a vida se desata com a facilidade com que se atualiza o status na rede social. As benesses da tecnologia são uma dádiva, mas estão aqui para nos servir e não para nos escravizar. É por isso uma pena que os smartphones revelem agora tantos stupid users.



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