quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Cadernos de Buenos Aires - crónica publicada no Diário de Notícias





Para a família Bridger


Os jacarandás em flor

Buenos Aires não é como Nova Iorque, que parece familiar logo que pisamos a cidade. Ainda assim, diz-se que esta é a capital mais europeia da América do Sul, que as fachadas são de Paris, certas ruas parecem Madrid e que os parques são londrinos. Precisamos sempre de buscar familiaridade, comparar o novo com o que conhecemos. Mas Buenos Aires pareceu-me tão singular e inédita como os infinitos jacarandás – púrpuras, roxos, rosa – que, por toda a cidade, tornam ainda mais celeste o azul do céu.


La abuelita de hierro

A ditadura argentina (1976-83) reservou todos os eufemismos para o nome com que se autobatizou – Processo de Reorganização Nacional –, porque em tudo o resto era bruta, implacável e canalha. Logo no primeiro ano, o marido de Estela Carlotto foi sequestrado por militares, que exigiram um resgate (pago) ainda que o raptado não tivesse atividade política. Depois foi Laura, a filha, opositora do regime, que desapareceu. Estela encontrou-se com um militar de alta patente, que lhe disse que não voltaria a ver a filha. Confirmou-se a sentença. Contrariamente a muitas outras mães, Estela recebeu o cadáver de Laura – 30 mil argentinos “desapareceram”– e, anos mais tarde, mandou exumar o corpo. A autópsia provou aquilo que Estela já ouvira de uma ex presa da ditadura, que a informara que a filha estava grávida antes de morrer e que lhe tinha dito que, caso fosse um rapaz, lhe chamaria Guido, como o avô paterno.
                Durante mais de trinta anos Estela procurou o neto e ajudou outras avós a encontrar as crianças roubadas, de mulheres grávidas e mães recentes, para serem entregues a famílias de adoção – muitas delas de militares. Até 2014 foram encontrados 113 bebés (agora adultos), graças um banco genético argentino, que desenvolveu uma fórmula para apurar o que chama de “índice de abuelidade”, estabelecido entre netos e avós, uma vez que os pais dessas crianças estão mortos.
Estela é presidente das Avós da Praça de Maio, associação conhecida por reivindicar o paradeiro dos netos e o julgamento dos culpados. Em Agosto, a Argentina sentiu na pele a resolução de uma angústia e de uma luta de 36 anos, um desses momentos coletivos em que se desata um nó e todos (ou quase todos) torcem pelo mesmo lado. Tinham encontrado a 114º criança sequestrada.
Ignácio, músico, já tocara em concertos organizados pelas Avós da Praça de Maio. Descobrira recentemente que fora adotado e registou o seu ADN no banco genético. Quando chamaram Estela, com 83 anos, pediram-lhe que se sentasse. Só depois deram a notícia. Ela disse: “O meu neto? Vou poder abraçar meu neto? Devolveram-me parte da minha filha.” Depois de conhecer a avó, Ignácio acrescentou Guido ao seu nome.       


Cem pesos

Qualquer argentino é um analista económico e financeiro. Falar de política é como beber mate ou comer churrasco. Não me refiro à fama de povo aguerrido, educado e politizado, mas a algo palpável que resulta da necessidade do dia a dia – e da história recente.
Depois de mais de três anos a viver no Brasil, percebi que os problemas deste continente fazem a crise europeia parecer uma dor de dentes – no Brasil, uma pessoa é assassinada a cada dez minutos. Um carioca, mostrando a diferença entre as nossas vivências, perguntava-me “Você já teve racionamento de carne?
                Os últimos 40 anos da Argentina foram uma montanha russa lancinante. Mas todos os governos, democráticos ou ditatoriais, tiveram uma coisa em comum. Pediram muito dinheiro emprestado. E não pagaram. A palestra de uma amiga porteña, num café do Rio, ajudou-me a entender uma coisa: a volatilidade com que se viveu e vive na Argentina é estranha para um português que, apesar da crise recente, cresceu num país estável em que a qualidade de vida foi sempre a subir durante quase 40 anos.   
                Num banco um dólar vale oito pesos. Nas “consultoras” ou “cuevas” são 14 pesos. Os taxistas queriam que trocasse os meus dólares pelos seus pesos. O dinheiro argentino desvaloriza, a inflação anual está nos 40 por cento, o governo manipula os números, e, apesar disso, há um impulso consumista, gastar hoje porque amanhã vai valer menos.
Um porteño ensinou-me todos os passos para identificar uma nota falsa de cem pesos – largamente disseminadas. Já no aeroporto, de regresso ao Rio, a menina da caixa alertou-me para o defeito de uma nota e, gentilmente, pediu-me desculpa, como se temesse que eu fosse embora mal impressionado. Não fui. Porque mesmo perante notas falsas, relatos de amigos que tiveram de buscar a vida fora da Argentina e histórias da selvajaria da ditadura, Buenos Aires parece existir ainda e sempre, pelo menos na minha imaginação, de acordo com um louvável postulado de Hemingway: graciosidade sob pressão.


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