segunda-feira, 20 de outubro de 2008

livro de fotos antigas


Este texto foi escrito há exactamente cinco anos, noutro lugar, noutra vida.

Cartografia íntima de uma ressaca

É como se fosses um profissional do álcool e as mãos tremessem pela manhã. No entanto, estavas ontem seguro, diante de um espelho, passando um polegar no queixo para melhorar o sorriso. Um dos teus amigos levantou-se quando passou uma modelo que se preparava para fumar uma cigarrilha:

“Helena Christiensen. Volto já.”

E enquanto observavas a ausência de roupa interior de uma mulher que não sabia cruzar as pernas, levantavas a mão para pedir outra bebida, e avisavas um amigo que lhe sobrava pó branco no arco de uma das narinas. Ele riu-se, passou a palma no nariz e entregou-te um maço de cigarros.

Andas assim toda a semana. Acordas e tomas banhos de imersão para depois aliviares as dores de cabeça com um saco de gelo. Dormes quase nada. Passas um produto debaixo dos olhos para esconder os semi-círculos escuros. Mas durante a noite continuas a ser o protagonista. As mulheres admiram-te a eloquência e a forma como as encostas à parede enquanto conversas. Os homens, os teus amigos, respeitam o teu poder, e parece que tocam chapéus invisíveis, levantando-os, para assinalar a tua chegada.

Ontem estavas sentado na tampa da retrete de uma casa de banho. Trancaste a porta. Tinhas um copo apertado nos dedos e pensavas se querias regressar. No outro lado havia música e pessoas que se acendiam e se apagavam. Afinal, tudo o que já conheces. Sentiste-te cansado.

E hoje acordaste depois do telefone tocar muitas vezes. Nunca atendeste. Estás na cama, incapaz de procurar comida apesar da fome. Encontras-te fraco e imaginas a cidade que visitaste, ainda este mês, mais a norte, onde experimentaste as manhãs e onde avançaste nos corredores de um supermercado com uma mulher a quem gostavas de fazer cócegas. Havia uma universidade, casas sem uma nódoa nas paredes, famílias nos jardins, e um silêncio que não conhecias há alguns anos. No caminho de regresso ao aeroporto, viste como as ruas estavam vazias porque as crianças estavam nas salas de aula e os pais trabalhavam, esperando ir buscá-las mais tarde, prontos para lhes dar banho e as sentar à mesa. A mulher a quem não fugiste na cama, deixando – nunca deixas – que enrolasse o corpo todo no teu corpo, tremeu os lábios mas não chorou. Quando lhe seguravas as mãos pensaste no que aconteceria se ficasses. Mas depois havia uma frase de um escritor – Chuck Palahniuk - que estava colada no céu da tua boca:

“Fuck me for saying this but I don’t want any peace until the day I die”


E como não tinhas a certeza, agarraste na mala e seguiste caminho, procurando o bilhete de avião no bolso do casaco.

Agora, que estás sozinho, na cama, e que o próprio corpo te magoa, percebes que existe outra vida além da cidade onde vives e que talvez consigas sair daqui para outro lugar. Um dia, a mulher que não chorou, talvez esteja à tua espera no aeroporto, para levar-te depois ao quarto tão branco e garantir-te que podes ficar, procurando espaço nos armários para a tua bagagem. Mas, por agora, escolhes uma nova lâmina de barbear e abres as portas do roupeiro, escorrendo uma mão nas camisas. Mais logo, o teu pescoço vai cheirar a perfume e quando entrares num táxi não te vais lembrar de nada disto. Até que voltes a acordar amanhã.

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