domingo, 19 de outubro de 2008

Original Sound Track



Nota: este texto deve ser lido com a banda sonora acima indicada.

Mil e quinhentos quilómetros, ir num dia a Madrid e regressar no seguinte, uma espécie de missão de recuperação da minha vida em objectos, guardada em casa de três amigos: caixas, malas, um globo terrestre que ficou esmagado - tudo na parte de trás de uma carrinha alugada.

Conduzi sozinho, redescobrindo que é o trânsito da cidade que me torna numa pessoa pior. Há uns dias, chamei 'Velho ordinário' a um condutor que escrevia mensagens no telemóvel ao mesmo tempo que mudava de faixa.

Mas, na auto-estrada, na extensão desses mil quilómetros, tinha a paisagem lisa e morna da Península, estações de serviço espanholas onde suspeitamos que todos são loucos, ou que uma tragédia ou uma festa ou uma intoxicação alimentar podem começar a qualquer momento; durante horas, sozinho, pude pensar sem suspender a viagem por causa de um telemóvel, um email, uma desculpa para ir fumar um cigarro.

Gosto de auto-estradas como gosto de aeroportos - a electricidade do movimento, a mesma ansiedade feliz de quando acordamos de manhã e sabemos que já temos as malas feitas e os bilhetes dentro do passaporte. Nesses dias, o pequeno almoço sabe muito melhor.

Ir a Madrid e voltar pode não ser uma viagem de aventuras. Mas é, pelo menos, sair do mesmo lugar; é sacudir o pó da roupa e estar mais alerta, mais atento a tudo o que ainda não conhecemos. O autor Pío Baroja, escreveu: 'O nacionalismo cura-se viajando'. E viajando cura-se também a monotonia de pensar e de sentir sempre da mesma maneira. Mas por vezes é apenas isto: estar em movimento, uma planície amarela com três linhas de fumo a subir ao céu, o rasto branco de um avião a emergir de uma nuvem, nenhum carro na estrada, e a música suficientemente alta para pensarmos que vamos a algum lado importante.


Ps - um 'guardia civil ordinário' multou-me por não acender os faróis quando entrei num túnel (105 euros); tem razão, incumpri e devo pagar. Mas o guardia civil, de bigode branco e uma mancha amarela ao centro, fumava e conversava com o colega enquanto se debatia com o formulário da multa. Fui informado (já o sabia) que tinha de pagar na hora ou o veículo ficaria apreendido. E foi então que a vulgaridade passou a estranheza mafiosa. Fui guiado pelas duas motos até uma rançosa estação de serviço, onde os Cds de artistas de feira escorrem azeite e há sempre uma televisão autoritária na sua estupidez. Diz-me o senhor agente: "Veja lá se essa caixa tem dinheiro, se não temos de ir a outra'. Estou diante da máquina e lembro-me de um amigo brasileiro a quem a polícia, na noite do Rio de Janeiro, fez o mesmo, embora sem a base legal espanhola, que obriga os condutores estrangeiros a pagar na hora. Digo-lhe, como se estivesse a comprar heroína num bairro de barracas: 'Tem troco de dez?'. 'Não'. 'Então vou trocar'. Note-se que ter pago na hora ( embora não tivesse outra possibilidade) me deu 'direito' a um desconto (o valor inicial era de 150). Pensei beijar a mão do Padrinho de bigode branco e agradecer a sua magnificência.

Há uma diferença entre o cumprimento das normas de tráfico (com as quais concordo) e a suspeita de que, em vez de se preocupararem com a segurança rodoviária dos outros humanos, os homens de farda têm a mesma prioridade de um wise guy com um taco de basebol em punho - chama-se dinheiro, ou extorsão mafiosa. Muchas gracias, capullo.

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