quarta-feira, 1 de julho de 2009
Fado da Boa Gandulagem
(conto publicado na revista Egoísta)
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Eu não sabia muito sobre História mas, durante o meu regresso secreto a Portugal, fiquei a saber que Luiz de Camões fora concebido no mesmo dia que o seu primo Sancho Pança, na estreia do verão de 1975, em Lisboa, um mês e meio antes do desaparecimento do seu pai – um pulha sedutor que, assim que suspeitou dos vómitos maternos, roubou um Renaul 5 e pôs-se a caminho da Praia da Oura sem pagar aos homens que iam instalar a marquise. Luiz é, desde o dia da sua concepção, um acidente doméstico, filho de um burlão do amor e razão principal da fuga paterna.
Luiz e Sancho foram primos até aos oito anos, quando o Gordo da turma (inspirado pela actividade delatora da sua avó) limpou a escarreta que recebia na franja todos os dias, no recreio do almoço, e gritou como se disparasse uma granada de fragmentação: “Vocês são primos e irmãos. Vocês são primos e irmãos. Vocês são primos e irmãos.” Logo de seguida, juntou as mãos diante dos tomates, pronto para ser pontapeado no centro de toda a dor.
Gordo perdeu dois dentes de leite, algumas mechas de cabelo e foram precisas duas lavagens no tanque para eliminar o cheiro a mijo na ganga das suas jardineiras. Luiz e Sancho foram suspensos durante duas semanas – tempo que passaram a jogar futebol na rua, a fumar beatas e a preencher paisagens selvagens com calquitos de animais.
Quando me contou esta história pela primeira vez – e já a ouvi em jantares de sociedade, num velório e no intervalo de um jogo da selecção –, Luiz de Camões não pôs o seu talento de narrador na estranheza dos eventos mas na beleza dos humanos: “A minha mãe e a minha tia preferiram a sobrevivência da espécie familiar em vez de enverdarem pela estratégia da faca na liga. Não houve puxões de tranças nem notícias na secção de crime dos jornais. Eram duas miúdas que esfregavam retretes em troca de notas de escudo, raparigas que purificaram um amor cabrão através do amor pelos filhos. Vivíamos todos na mesma casa. Já éramos irmãos quando ainda éramos primos.”
Luiz contou-me isto enquanto fazia o turno da noite como recepcionista de uma pensão no Rossio, onde oferecia uma lista clandestina de serviços de concierge: haxixe, branca, documentos, quartos para dois onde metia doze.
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Conheci Luiz de Camões quando regressei, após uma década em que o contacto com o país se ficara pelas anuais ceias natalícias: a minha família tinha a apetência destruidora dos gafanhotos, sempre velozes e em movimento para outro lugar. As minhas irmãs desculpavam-se com os divórcios, evitando o anti-climax pós abertura dos presentes (“Tenho de levar os miúdos ao pai”); a minha mãe preferia a televisão, dispensando a mesa dos doces onde os filhos recordavam histórias do passado já que não tinham um presente comum; o meu pai, afastado do cognac pelo cardiologista, isolava-se no escritório em busca de planetas na lente de um telescópio..
Quando regressei a Lisboa, em Junho de 2008, tinha dez anos de engenharia financeira na City de Londres, suficientes bónus acumulados para não me preocupar com uma carreira profissional e a missão de transformar o meu corpo num prodigioso instrumento de prazer ou, como diria o meu traficante de mdma enquanto me punha um saquinho na palma da mão, “Desfruta, bicho”. Por tudo isto, a família não foi informada da minha presença num apartamento nas proximidades da praça do Rossio.
Vi Luiz de Camões, pela primeira vez, na rua onde ambos vivíamos, pouco tempo depois de ter feito a mudança. Segurámos o olhar, um momento de inquisição sem vocábulos, apenas sobrancelhas, a lei da procura e da oferta: “Queres comprar ganza?”, disse ele.
Certa tarde, no terraço de minha casa, quando já tínhamos uma proximidade de semanas a jogar Playstation, a fumar berlaitas e a chupar futebol internacional na televisão como se fosse um remédio para a ressaca, Luiz fechou o bloco onde tomava notas e perguntou: “O que é que tás a aqui a fazer, mano?”
“Em minha casa ou na linha cronológica da existência humana?”, quando estou mocado tento ter mais piada. Nem sempre resulta.
“Londres, guita, gajas internacionais, férias na Sardenha e sangria de champanhe. Não dês p’ra esperto, sabes do que falo. Tá-se?”
“Tá-se”, e foi então que, enquanto Sancho Pança cortava as unhas dos pés com a tesoura da cozinha, decidi relatar a primeira versão da minha biografia londrina em formato VH1 Behind The Music. Mais ou menos isto: numa corrida de carros organizada pela empresa, dei por mim de mãos leves no volante e silêncio dentro do capacete, mesmo que tudo em meu redor fosse o ruído de fracturas expostas – as pessoas, os carros, os motores. Tinha participado num acidente e, no final, nem precisei de fazer radiografias. Encontraram-me intacto. Não havia gratidão da minha parte, nem epifanias, nem uma santa com segredos para a Humanidade a aparecer-me no espelho retrovisor. Eu não sentia nada. Segundo o meu auto diagnóstico: depressão.
“Fónix, xerife, e como é que chegaste aí? Desordem bipolar genética ou vítima das tuas circunstâncias privilegiadas?”, Luiz de Camões falou ao mesmo tempo que colava duas mortalhas. Sancho Pança arrancou outra cerveja do balde de gelo, disse: “Enrola aí uma daquelas que matou o Bob.” Sancho, de cognome: O Animal.
Eu abri um kinder surpresa, comi o chocolate e continuei a narração. Contei-lhes da birra de uma advogada quando descobriu que o iate que tínhamos alugado, na Croácia, não dispunha de internet sem fios. E expliquei-lhes como acedi a mudar-me para um hotel com ela. Toda a minha vida tinha sido um servente das expectativas: quadro de honra, equipa de râguebi, Blackberry, Iphone, Blackberry outra vez, Saint Tropez, Soho House, revistas de moda, nome na guest list, bónus anual. Eu era o perfeito crash test dummie dos publicitários. O influenciável da manada. O tipo que, por medo de ficar para trás, não sabe dizer não. O acidente na corrida de carros? Plagiei-o de uma entrevista a um actor inglês. Desculpem-me os fanáticos da originalidade. Precisava de um evento para a minha narrativa de mudança, tinha falta de uma razão para me demitir da própria vida. Não é fácil sair do carrocel em andamento. Eu só queria outra coisa que não fosse a mesma coisa.
Luiz de Camões lambeu a cola das mortalhas com a precisão de um fumador que aperta charros desde os 15 anos e disse: “Estou a ver. Meteram-te um martelo pneumático nas mãos e tu pensavas que era um violino.”
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Luiz de Camões: o adulto que passou a adolescência no lugar onde, séculos antes, morreu o seu homónimo e poeta fornicador de nativas. Na fachada do número 139 da Calçada de Santana, a placa, com letras esforçadamente épicas, informa: “Nesta casa diz a tradição documental faleceu em 10 de Junho de 1580 Luiz de Camões.”
No segundo andar direito viveu toda a sua vida Paulo Jorge, que, após ter descoberto a Ilha dos Amores numa aula de Português, se deu conta da importância do escritor zarolho. Paulo Jorge auto coronou-se então Luiz de Camões e começou a articular sonetos em mortalhas. Num momento de honestidade cocainómana, na casa de banho de um after-hours, Paulo Jorge falou comigo: “Pá, os outros putos furaram as orelhas e fumavam chinesas, eu inventei-me poeta genial”.
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Na versão número 2 da minha vida foi uma mulher francesa, filha exclusiva de pais com helicóptero e menina para estar três dias em festa, que andou a brincar com a minha ilusão de amor romântico. Vocês sabem do que falo: filhos eloquentes que lêm (livros), casas de campo e amigos estrangeiros, viagens para destinos onde ainda são precisas vacinas exóticas. Um dia fui buscá-la ao aeroporto e o voo atrasou. Lá estava eu, esperando quieto no meio de pessoas a caminho de outro lugar: o homem que, embora sem nada nas mãos, tem a postura palerma de quem segura um cartaz de boas-vindas e balões da Disney. Durante quatro horas senti que o casaco me estava grande nos ombros e que o barbeiro falhara o equilíbrio das patilhas. Nessa manhã, eu tinha feito uma limpeza de pele, recebera a nova mobília, engordara o frigorífico com produtos caros e de fim-de-semana. Diante dela, inventava traços de personalidade que a manteriam perto de mim: gostar de carros, de redes sociais de internet, de pedir mesas com garrafa.
Eu não era eu.
Eu era a farsa encenada pelo medo de desiludir o meu amor.
O voo piscou no ecrã. O avião aterrou. Os passageiros foram desvendados pelas portas automáticas. No final do cortejo passaram por mim os membros da tripulação. Pensei: de certeza que lhe perderam a mala, claro que houve um problema com o passaporte, ficou sem bateria no telemóvel. Esperei mais uma hora pelo voo seguinte. Ela não chegou.
Em certos dias, se olharem para mim com atenção, ainda podem ver os balões murchos a sobrevoar a minha sombra.
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Luiz de Camões acabou ao 12º de ano e sabia de cor o poema Tabacaria, de Fernando Pessoa. Tatuou nas costas: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Nas suas provas imaginárias para o clube dos génios, Luiz de Camões chumbou em poesia. Tantos cadernos escritos e tantas rimas que soavam como dobradiças. Mas recebeu louvores nas disciplinas de improviso, tráfico de droga e encanto social. Conseguia a amizade dos senegaleses ilegais que enfiava nos quartos sobrelotados da pensão. Encantava as estudantes de arquitectura – betas, loiras, solarizadas – que adquiriam os seus saquinhos de poção mágica. Mas apesar da sua excelência como mestre de cerimónias, Luiz de Camões julgava-se mais sábio na métrica dos versos.
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Versão número 3 da minha vida. Ela não era francesa, antes filha de uma iraniana e de um norueguês. Dançava com auscultadores nas orelhas enquanto cozinhava. Disse: “É a primeira vez que penso em ter filhos com alguém.” Mudou-se para minha casa. Guardámos os seus vestidos no meu roupeiro. Um fato meu, um vestido dela. Um fato meu, um vestido dela. Também me disse: “Compreendo que te drogues. Mas não gosto que te drogues.” No final de tudo, solucei no seu colo porque tinha acabado de pontapear-lhe o coração. Como na réplica de um terramoto, o meu peito foi demolido logo de seguida e com mais força. Ela disse: “Não tens culpa de não gostar de mim”: E alguma coisa se afundou na falha tectónica que tenho cá dentro.
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No verão de 2008, Luiz de Camões tornou-se no artista convidado da minha vida. O amigo das férias grandes. O cúmplice da malandragem. O estranho que se senta ao nosso lado no avião e, ao reparar que choramos com a cara colada na janela, pergunta: “Está tudo bem?” Luiz de Camões era, tenho agora a certeza, o tipo que nos manda pôr o cinto de segurança enquanto despedaça o limite de velocidade numa noite de diluvio. Se o carro capotasse, olharia para mim no lugar do sobrevivente e perguntaria: “Está tudo bem?”
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Fosse qual fosse o motivo (versão 1,2 ou 3 da minha vida), a verdade é que eu estava em Lisboa e fazia muito calor e Luiz de Camões, que tinha a chave da minha casa, abriu as portadas do quarto e começou a apanhar roupa suja do soalho: “Javardolas, vai dar cabo dessa tesão de mijo e bute nessa, que daqui a nada anoitece. Lua cheia, brother from another mother. Elas ficam doidas como lagartixas a trepar paredes.”
E esta era a minha vida no regresso a Lisboa. Meter conversa com desconhecidas sem medo que o carro fugisse na primeira curva, fazer uma desintoxicação de culpa, dizer tudo como os malucos. Ou, nas sebosas palavras de Sancho Pança, “Curtir bués”. Se esta parte da minha existência fosse um anúncio de tinta para o cabelo, o cartaz diria: “Seja você mesmo”.
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Numa das últimas noites de Agosto, viajámos pela cidade no carro pelintra mas descapotável de Luiz de Camões. Parámos em bares com vista sobre o Tejo onde nos ofereciam bebidas e o meu parceiro distribuía bolsas de cocaína a troco de notas de cinquenta. Estivemos em caves com seguranças da noite que comiam frango assado. Um deles, Balalaica, traficante de esteróides, praticante de jiu-jitsu e levantador de pesos, disse: “Camões, a minha dama está na casa da Susy, passa lá e deixa-lhe um presente dos teus. Põe na minha conta.”
No carro, o meu parceiro explicou-me que Balalaica gostaria de ser preto, que Susy (ex-stripper) era mulher de um empresário com negócios manhosos em Luanda e que a namorada de Balalaica era casada com um deputado. Contava-se que Balalaica costumava comê-la na presença do representante da nação.
Sancho Pança, campeão dos lugares comuns, dizia: “As desculpas não se pedem, evitam-se.” E, não fosse o meu fascínio pela impunidade recente da vida, talvez pudesse ter evitado tudo: aquela primeira linha de coca na mesa da sala, a proposta para os shots de tequila, a erecção imediata assim que a amante de Balalaica tocou a minha coxa com o indicador, pontuando na minha libido a história que contava. “Queres ir à casa de banho dar um tiro?” Ponto de interrogação. “Não”. Ponto final. The end. Mas em vez disso, respondi:
“Ya.”
Madalena, olhos azuis e pele clara. Cabelo quase negro. Caminhante dos tapetes vermelhos. Os sapatos como se tivessem decotes. Franja de pervertida. Mulher descarada: “Só como gajas que sejam muito boas.” Eu e Madalena a falar de Marrocos numa casa de banho de discoteca. Eu e Madalena num táxi com as janelas abertas por causa do enjoo. Eu e Madalena nus, na minha sala, a beber da garrafa, incapazes de ir comprar gelo. Eu e Madalena dispostos a incendiar tudo nessa noite porque sabíamos do nosso prazo de validade.
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Se tivesse havido uma investigação policial com direito a testes médicos, podiam ter a certeza científica que não aconteceu mais nada que beijos trapalhões e alguma actividade na zona dos mamilos. Os nossos corpos estavam demasiado intoxicados para desempenhar qualquer tarefa que não fosse olhar para o tecto a partir da cama. Madalena quis o meu peito para dormir. E o meu braço, pressionado pelo seu pescoço, ficou sem sangue, dormente, fantasma. Podia ouvir o meu coração a galopar por causa da droga – numa veia do bícepe, no eco interior do colchão, num anfiteatro vazio. Se consegui dormir, não me lembro. Não me mexi uma só vez. Não saberia onde ir.
O telemóvel começou a tocar por volta da hora de almoço, uma e outra vez, agravando as dores da ressaca. O som polifónico e repetitivo chegava da sala com a mesma insistência com que a minha mãe aparecia no quarto dos filhos, batendo as palmas das mãos e oferecendo-nos ao frio matinal em sacrifício: um só movimento, rápido, doloroso, o edredon a descolar-se dos nossos corpos como se fosse uma tira de cera.
Madalena: “Deve ser a minha empregada por causa dos miúdos”. Levantou-se e trouxe o telemóvel para a cama. Embrulhou-se em mim, os seus dedos brincando com os pêlos do meu peito. Eu podia ouvir a voz de um dos seus filhos: “Mãe, onde é que estão os patins em linha?” Madalena respondeu, desligou e beijou-me na boca: “Vou dormir mais uma hora, está bem?” E o meu braço preparou-se para deixar de existir.
“Há coisas que... Não sei mas... Se calhar é melhor que...”, disse eu, algum tempo mais tarde. Madalena já dormia.
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Luiz de Camões estava ao lado da minha cama, mais senhor do momento que Zidane na marca do penalti, as chaves suplentes de minha casa nos seus dedos. Madalena não acordou logo. Olhei para a cara dela. Tinha a maquilhagem cheia de pequenas rachas como num quadro antigo. Sentei-me no colchão, os pés a tocar no soalho. Havia muita luz sobre a minha cama, o sol a pique entrava pelas clarabóias e o meu pescoço começara a transpirar. Os sinos da igreja da Graça voaram sobre o Martim Moniz e assinalaram as três horas da tarde dentro do meu quarto.
Luiz de Camões abriu as janelas e começou a declamar: “Não ouves a campainha?” Esticou-me a mão: “Desculpa mas tive de abrir a porta. O Balalaica vem a caminho para te fazer a folha”.
Porque não tinha resposta para os danos físicos que me causaria um segurança de discoteca, tentei resolver outro enigma. Como é que o Balalaica sabia que Madalena estava em minha casa?
Pus-me de pé e Luiz de Camões percebeu o pânico da traição na minha cara (Et tu, poeta?) Disse-me, encostando o dedo no meu coração: “Puto, nem penses nisso. Foi o meu primo. O meu irmão.”
Sancho Pança, o xibo, o merdas que tinha ciúmes das minhas conversas literárias com Luiz de Camões. O mesquinho que cortava o cabelo num indiano para ser mais barato: “Filho da puta do monhé, fodeu-me o capachinho”, e apontava para uma foto do Cristiano Ronaldo, rasgada de uma revista: “Tá igual, esta merda? Tá igual, por acaso?”. Sancho Pança, o alarve, que ridicularizava quem pedia uma meia dose. Sancho Pança, o picha mole, que, apesar de dormir apenas com putas, dizia que uma mulher só entrava nos seus contactos de telemóvel se engulisse. Sancho Pança, cuja alcunha tinha nascido da ignorância: Nélson Manuel viu uns desenhos animados sobre D. Quixote e confundiu a personagem espanhola com o poeta português. “Foram as barbas e aquelas roupas”, terá dito aos amigos. Nélson Manuel já tinha obrigado toda a gente no bairro a chamar-lhe Sancho Pança, companheiro fiel de Luiz de Camões, quando alguém lhe explicou a impossibilidade da dupla.
No quarto, olhei para os telhados, uma hipótese de desaparecimento.
“Não penses em fugir. O gajo encontra-te. Propus-lhe ser eu a tratar de ti. Dei-lhe a minha palavra. É a única maneira de te safares. Sinto imenso, tenho mesmo de te fazer umas mossas.”
Eu disse: “Está bem, vamos a isso”, com o mesmo tom motivado e optimista que usaria antes de entrar num campo de futebol.
Luiz de Camões ia levar Madalena do meu apartamento. Ela começou a vestir-se, parecendo-se com um manequim que passara demasiado tempo na montra, desbotada, o cabelo como se fosse uma peruca depois do sono. Madalena transformou-se de novo em bicho humano assim que pegou na aliança, em cima da mesa de cabeceira, e a enfiou no dedo. Despediu-se de mim com um beijo no pescoço, interrompido pelo toque do telemóvel, o chamamento da prole: “Mãe, os patins não estão na garagem”.
12
Luiz de Camões regressou ao meu quarto com toalhas, luvas de látex e sacos de gelo. Pensei que, depois de sair do hospital, queria estar na Praça do Rossio, num dia de calor, quando a brisa transporta a água das fontes, como se fosse chuva, para a cara dos visitantes estrangeiros e dos carteiristas. Para a minha cara. Este, afinal, também é o meu lugar.
Deste vez, ao contrário do que acontecera na fantasiosa corrida de carros, eu ia ouvir o barulho do acidente.
Seja lá qual for a matéria que nos une uns aos outros, essa matéria estava ali, no meu quarto e nas mãos salvadoras de Luiz de Camões. Seja lá o que for que nos faz seguir em frente depois das colisões, essa coisa também estava ali.
Eu disse: “Não podemos é ficar parados”. Disse ainda, guardando as mãos atrás das costas: “Tanto me ajuda agora o teu engenho e a tua arte”.
“É o mínimo”, Luiz de Camões tirou os anéis, calçou as luvas: “Desculpa mas vou ter de dar-te a sério. Paz, irmão.”
E antes do primeiro impacto, pedi apenas:
“Posso ligar aos meus pais para me irem ver ao hospital?”
Luiz de Camões, fornecedor da felicidade e ser magnânimo, começou a arregaçar as mangas da camisa e disse:
“Acho que deves.”
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5 comentários:
Muito bom!
beijo
busycat
Genial. Parabéns.
Apaixonante
Quero mais!
Sofia
Pois que sim. A sério que sim. Gostava mesmo de conseguir fazer um comentário único. Mas não sei que se passa. Este maldito período de insuficiência criativa persiste e, mesmo que queira escrever o que penso agora, nada que saia da ponta dos meus dedos trôpegos me soa, com efeito, bem. Resta-me o vulgar, o comum. O elogio. Ou então deixo-o subentendido. É de fácil percepção. Não me daria ao trabalho de escrever palavras neste quadradinho, até me doer a cabeça e os olhos, se o conjunto das mesmas não formasse um elogio sentido. Ao bom gosto. Ou qualquer coisa assim. Sim, talvez. É qualquer coisa assim...
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