quinta-feira, 4 de junho de 2009
Lambadas e números de telefone
(O Jornal de Letras desafiou-me a escrever sobre um dos meus professores. Fica aqui o resultado)
Isto eu não aprendi na escola: as memórias estão atarrachadas a sentimentos e emoções. Como tal, temos mais dificuldade em recordar números de telefone e recuperamos com rapidez uma melancia que comemos debaixo de um pinheiro, junto de uma praia com falésias e um avô que era perito em desmantelar a fruta enquanto assobiava fados do Alfredo Marceneiro.
Se me lembro da escola – um colégio católico de rapazes e uma universidade reaccionária e pública num palácio decadente –, lembro-me, por exemplo, de como S.G, professor de francês, contribuiu, com as suas mãos sempre prontas a disparar estalos, para que o meu domínio da língua gaulesa seja hoje qualquer coisa de insuficiente entre o Bon jour madame, un café, s'il vous plait, e o Je ne parle trés bien français, je suis desolé, mademoiselle. S.G. tinha regressado de África depois do 25 de Abril, e na sua postura esticada, nas suas falanges longas e castigadoras, vingava um qualquer ressentimento antigo, que se exprimia através do medo que impunha nas suas aulas.
S.G, director de turma, obrigava um aluno por dia a tomar conta do quadro: apagá-lo depois de cada aula e escrever, no lado esquerdo, a data e a lista de aulas desse dia. O “aluno do quadro” tinha ainda de deixar na secretária de S.G uma caneta vermelha e dois cadernos, forrados e colados, de forma a criar uma bolsa, entre os dois, onde se guardavam folhas de dossier (para exercícios) e folhas de teste (para os dias de terror). O primeiro caderno servia para os sumários de cada aula, escritos no quadro, e passados a limpo, em casa, a partir de uma sebenta que éramos obrigados a usar – S.G odiava que apagássemos ou riscássemos, tirando pontos percentuais dos testes por cada correcção ou tentativa de eliminar uma palavra com borracha para caneta. O segundo caderno era usado para os trabalhos de casa. S.G explicava a exigência da caneta vermelha assim: “Não vou gastar a minha tinta para vos corrigir”.
Os primeiros cinco minutos de aula assemelhavam-se a uma sessão de tortura pública do Santo Ofício: em vez do pelourinho o quadro, em vez de chicotes e archotes, a caneta vermelha e as palavras humilhadoras de S.G, essa ameaça constante de que um erro ortográfico, no quadro, valeria um puxão de orelhas a estalar as cartilagens. Tanto o judeu medieval como o aluno do 7º ano, turma D, tinham em comum o temor pela autoridade e a incapacidade de perceberem porque estavam a ser castigados.
Lembro-me de mais professores maus, tanto no colégio como na universidade, do que de professores bons (tão poucos). Fui percebendo que ser bom professor não significa ter um grande domínio da matéria dada, como acontecia com um catedrádito, na faculdade, que ditava de cor o seu livro – todo, em bocejantes aulas, às oito da manhã, em que não podíamos fazer perguntas. Estávamos em 1994. Comprendi que há demasiado docentes que não têm jeito algum para aquilo, como o professor que todos os anos repetia uma pergunta na frequência do primeiro semestre (O que é a Sociologia?), obrigando que a resposta fosse uma cópia, palavra a palavra, da definição que ele expusera no seu livro há décadas.
Para quem tem apetências criativas, o nosso ensino é como o pai que obriga o filho canhoto a escrever com a mão direita. Ser professor exige uma dedicação e uma vocação admiráveis. Não é o mesmo que ser caixa de supermercado, porque pede sentido de missão. S.G não tinha nada disto. Tinha ido parar ali por uma cambalhota improvável da vida, transportava ainda esse método de ensino “Mete-lhes medo e e bate-lhes quando se enganam”, acreditando que a disciplina austéra (uma mistura de Sazalar e Cardeal Cerejeira) criaria cidadãos impecáveis na aparência e lineares na cabeça.
Sempre que me encontro com os meus melhores amigos desse tempo, repetimos as histórias de S.G e rimos muito, algo que, se acontecesse na sua aula, valeria uma bofetada no focinho (“Ficas desenhado na parede, ouviste?”) e uma falta disciplinar. Não me lembro de cor de nenhum dos números de telefone desses meus amigos e, no entanto, lembro-me de tudo isto. E rio-me. Sem ressentimentos nem pulsão para a vingança, mon chéri monsieur S.G .
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3 comentários:
muito bom... Grande SG. Graças a ele o meu francês é tão bom como o teu. Ainda haveria outros para escrever noutros e nos mesmos registos. O missionário que veio de Moçambique e abria cabeças aos alunos que se atrasavam. O outro tal de francês que veio a seguir ao SG e era mais bêbado que Vilarinho e o Soares Franco juntos. Ainda o sádico biólogo brasileiro que tinha distúrbios de personalidade.
c'est incroyable que nous soyons sains
Palavras célebres pós-estaladão: "SIM Stôr! SIM Stôr!"
Gostei! Mas olha, vê a coisa pelo lado positivo, pelo menos não foste obrigado a ler o Les Petits Enfants do Siècle (era muito à frente, de certeza que os padres não vos passavam essas coisas). Também fui do 7º D. Mas de uma escola pública e suburbana onde as meninas cabo-verdianas nos puxavam os cabelos lisos e quem chegava de carro era betinho - malditos pais que me obrigavam a chegar acompanhada e, como se não bastasse, montada na horrorosa 4L branca, tipo frigorífico. Agora percebo, para quem ia a pé era pior. Ou atravessavam um descampado e se arriscavam a ficar sem relógio e/ou sapatos, ou tinham de passar mesmo ao lado de um bairro de onde, tirando o Jorge Andrade, nunca saiu nada de bom. Tive um professor que oferecia droga, uma professora lésbica e insinuante e um mítico professor e ex-bailarino que caiu no erro de levar fotografias dos seus tempos áureos para a sala de aula. Só nunca apanhei nenhum que quisesse malhar nos alunos. Naquela escola era mais ao contrário.
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