segunda-feira, 20 de julho de 2009

Pela estrada fora

(texto publicado na NS, no verão de 2007)



Prostitutas importadas, adoradores de Franco, marroquinos em automóveis sobrelotados, camionistas ingleses, aldeias fantasma, a herança de Dom Quixote, estações de serviço, turistas em tronco nu. De Madrid a Sevilha, numa das estradas mais percorridas do país. Uma road trip, no epicentro do calor, a essa Espanha mais profunda e insane

Para a Mari


Quando a superfície das ruas de Madrid brilha e parece desfazer-se, e o calor se entranha nos bancos dos carros, no avesso da roupa, no ruído das máquinas de ar condicionado que se prendem nas fachadas dos edifícios, então, as tardes da cidade passam a ser bairros de silêncio, e há a certeza de que uma ventoinha num pequeno apartamento jamais solucionará o desespero dos corpos. Quando todos se escapam para a costa, os que têm de ficar sentem-se sozinhos, e acreditam (mesmo) que alguma coisa se estraga, que a temperatura danifica a sanidade mental, desmanchando gravatas, arregaçando vestidos, e aumentando (ainda mais) a pulsão sexual; os que ficam, falam disso entre si, e estão seguros de que a interioridade de Madrid – no centro da península, tão seca, a 600 metros de altitude – transforma pessoas em bichos encurralados, em devoradores de bebidas alcoólicas com gelo, em seres incapazes de encontrar uma saída nesta cidade, um sítio onde possam, por fim, respirar.

Na sombra de uma varanda no bairro de Chueca, uma inglesa, a viver em Madrid, propõe uma fuga da demência. Fazer uma road trip, como nos livros, como nos filmes. Sair daqui. Só isso. E dias depois, com mapas, guias, e telefonemas a conhecedores da geografia e das personagens de Espanha, um carro abandona Madrid, nessa estrada, a A4, que liga a capital a Sevilha, e que tanto espanhóis cruzaram durante as suas vidas, a caminho do sul.

Os primeiros quilómetros são os danos colaterais do progresso da oitava economia do mundo: polígonos industriais, parques de diversões, centros comerciais, e o primeiro touro Osborne da paisagem – há 90 em toda a Espanha –, entalado entre uma bomba de gasolina Repsol e um armazém de cerâmica. Entramos na região de Castilla La Mancha. O cenário começa a coincidir com a literatura de Cervantes e os filmes promocionais da região. Há pequenos tornados que erguem pó no horizonte, intensificando a desolação de um território que torna os humanos mais duros, mais loucos ou mais engenhosos. Foi aqui que Dom Quixote, engrandecido pelos romances de cavalaria, se passou para a equipa dos dementes. Foi aqui que cresceu Pedro Almodóvar, nessa estrutura social de mulheres viúvas ou com maridos emigrantes, retratada em Volver – filme que mostrou ao resto do mundo (em Espanha, é claro, já se sabia) como a persistência do vento de La Mancha é uma causa de loucura.

Em Tembleque, a paragem inicial, encontramos o primeiro marco informativo de um tema que nos acompanhará durante a viagem – a ideia de duas Espanhas divididas numa guerra civil (1936-1939) que ainda não foi digerida; o conflito entre uma Espanha franquista, que não se apagou por completo, e o desenvolvimento do país europeu que mais estrangeiros recebeu no último ano. Nessa cruz de pedra, diante da igreja de Tembleque, que faz homenagem aos franquistas que morreram na guerra (“Caidos por Dios y por España”), alguém cobriu os símbolos do antigo regime com tinta preta e escreveu: “Viva la República”.

O primeiro lugar mencionado por Dom Quixote chama-se Puerto Lápice, e surge-nos como uma rua comprida com casas de um lado e de outro, e sem habitantes no exterior. Seguindo a tradição manchega, todas as portas (abertas) estão tapadas por panos de diferentes cores e padrões. Desse modo, permite-se que as correntes de ar enfraqueçam o calor e protege-se, ao mesmo tempo, a intimidade das casas. Há Quixotes de metal por todo o lado.

Os senhores Molina, Tomás e Buitrago, todos com mais de 70 anos, passam as tardes numa praça: “Comentamos as turistas que descem dos autocarros”. Não são velhos que se queixam, homens que, apenas por serem velhos, acreditam que no seu tempo tudo era melhor. Tomás conta que nos anos após a guerra civil houve muita fome: “Em 1940 era miséria, miséria mesmo”. Molina saiu de Puerto Lápice com 11 anos, para trabalhar em Madrid como ajudante de pedreiro. São, ainda que reformados, representantes da nova Espanha, motivados pelo progresso económico e mental que o país conseguiu nos últimos 30 anos. “Estamos muito bem, tenho uma boa reforma, este país evoluiu muito, e este sítio também, esta manhã estiveram aqui sete autocarros só de uma vez ”.

O único movimento nas ruas de Puerto de Lápice acontece quando os turistas estrangeiros saem de um autocarro directamente para La Venta, lugar visitado por Dom Quixote. O edifício providencia artesanato e tortilhas. Sobre este pueblo, Cervantes escreveu: “Seguiram o caminho de Puerto Lápice, porque ali, dizia Dom Quixote, não era possível deixar de encontrar muitas e diversas aventuras, por ser lugar muito passageiro”. Nunca nada de extraordinário terá acontecido em Puerto Lápice. Por isso mesmo se torna importante parar. E não fazer nada.

Dentro de um moinho, Rufo tornou-se o guardião da identidade gastronómica de Castilla La Mancha. Tem os ombros largos, barba, e dimensão do corpo reflecte as suas convicções (políticas e gastronómicas). “Há muito engano”, diz, enquanto serve uma salsicha que foi banhada em sidra. Tem uma pulseira com bandeiras espanholas. “Come-se muita porcaria de pacote, estamos na cultura da pizza e do sofá, mas tudo isto se pagará um dia”. Rufo, que trabalhou na indústria dos transportes (“Viajei muito, vi muita coisa”), passou um dia por um moinho destruído, na berma da A4, e informou a mulher de que iria pôr em prática as suas ideias: comida autêntica de La Mancha, atendimento familiar. “Leio o pensamento dos clientes quando ainda vêm no carro. Sempre que me levanto lembro-me do trabalho com o público e de como isso é bonito”.

Rufo gere o moinho, que também é uma loja de produtos gastronómicos, com a mulher e o filho. Os clientes conhecem-no, pedem-lhe sugestões – o gaspacho com perdiz escabechada, os queijos curados, os prato cozinhados no formo de lenha. Rufo tem galinhas, pavões e canários em redor do seu moinho. Não quer autocarros de turistas, acusa as directivas europeias que o proíbem de servir caça, e critica a “Espanha da comida ordinária, o país que consome mais cocaína (per capita) em todo o mundo, que deixa que o catalão se imponha nas escolas da Catalunha”. Os clientes escutam-no e concordam. Ele continua: “O que fazem os miúdos na rua às seis da manhã? Eu trabalho para viver e vivo para trabalhar. Sabe quem manda neste país? É a maçonaria”.

O moinho de Rufo é uma sala de debate, os clientes entram e, alinhados na mesma plataforma política, falam de como os atentados de 11 de Março tiveram a participação da ETA. “Os espanhóis estão enganados, a ETA é uma empresa, um negócio de muitos milhões”. Entra mais um cliente, que espera uma sugestão de Rufo, e este suspende a contundência das suas ideias políticas, deposita o prato no balcão, acrescenta: “Com um pouco de amor”.

Espanha lidera no número de prostitutas na União Europeia. Na A4, entre Madrid e Sevilha, há cerca de 50 puticlubs, como aqui se lhes chama. Edifícios que se vêm da estrada, com nomes como S’candalo ou American Show, reluzindo neóns durante a noite. Tínhamos um contacto, N., dono de Salas de Fiestas – eufemismo escrito na parte de fora dos edifícios do sector, que parece querer transformar uma casa de putas num baile da paróquia. N. foi descrito como "Una pieza", ou seja, um malandro que cruza as noites entre meninas e estupefacientes, com quem falámos por telefone mas que nunca apareceu. “Não te preocupes porque estás com uma amiga, comigo entram em todo o lado”. Mas sem a influência de N., e mesmo sabendo que parar a meio da auto-estrada, com uma inglesa de olhos azuis e um decote (temperaturas de 35 graus), não seria a opção mais sensata, tentámos ser clientes do El Lido. Um senhor pequeno, que podia ser o arrumador de carros do estabelecimento, olha-me e, espantado com a nossa tolice, atira: “Isto é uma sala de festas, não é um café, não pode entrar com ela, os outros homens vão apalpar-lhe o cu”.

Mas é preciso entrar. Alex, a inglesa, fica no carro. Lá dentro: um cartaz informa da abertura da piscina; ecrãs passam telediscos, máquinas fornecem lençóis como se dispensassem chocolates. Os quartos estão no andar de cima. Há três clientes a meio da tarde, homens grisalhos, com barriga, que escorregam as mãos pelas meninas. Uma morena, com minissaia, espartilho vermelho, aproxima-se. Publicita os seus serviços através da ondulação das ancas e da proximidade da respiração. Angelica tem expressões de adolescente (19 anos), chegou do Paraguai, e trabalha como prostituta há quatro meses. Durante o seu turno, das cinco da tarde às três da manhã, aborrece-se muito. “Estes homens são uns chatos”.

Uma carrinha transporta as funcionárias da cidade para o estabelecimento no meio do pó. Angelica diz que a tratam bem e que antes do fim do ano regressará ao Paraguai. O seu conhecimento de Espanha reduz-se a esse percurso diário, entre puticlub e o pueblo onde vive. Pode cobrar entre 50 e 150 euros por encontro, e conta que a maioria das suas colegas são russas e romenas – as mesmas que se sentam num banco corrido, com a postura entediada de adolescentes no recreio. Angelica não fala de máfias, de mulheres obrigadas a estar ali. Pode não ser uma delas. Mas com frequência, em Espanha, são apanhadas redes de tráfico de mulheres. Sobre esse tema, o homem que nos pôs em contacto com N., disse: “Bem, os donos desses sítios vêem as mulheres como propriedade deles, e por isso pensam que podem dar-lhes uns correctivos”. Mais tarde, quando Alex tentava tirar fotos de um destes estabelecimentos, durante a noite, três homens correram atrás do nosso carro. Preferimos acelerar e não saber o que pretendiam.

As saídas ao longo da A4 são acessos a lugares inesperados, fora do mapa, fora da lógica. Juan, dono do restaurante casa Pepe, tem o seu estabelecimento na fronteira de Castilla La Mancha com Andaluzia, na serra de Despeñaperros. Na saída do quilómetro 243, Juan criou um restaurante franquista que celebra o ditador e ridiculariza a Espanha democrática. Por todo o lado se encontram fotografias de Franco, bóinas militares, e a bandeira da ditadura. Há imagens do antigo presidente socialista, Felipe González, com cara de macaco; montagens de Zapatero e políticos catalães, e mesmo José María Aznar, aparece, aos olhos criativos de Juan, como comunista.

Rodeado de clientes que lhe pedem autógrafos, Juan tem o discurso preparado: “Este país, que um dia se chamou Espanha, é hoje um conjunto de tribos”. Diz que tem a bandeira franquista em 90 por cento dos produtos que comercializa, desde latas de azeite, a isqueiros ou toalhas de praia. “Tentei comprar uma estátua de Franco, que havia em Madrid, e não me deixaram. Quis comprar o barco do generalíssimo, e também não me deixaram. Estão a ver este? (aponta para uma cabeça de touro na parede). É o Zapatero”.

Fixado nos decotes dos seus interlocutores femininos, Juan mexe o bigode nervoso em cima do lábio: “Antes era o homem que mandava, a mulher sabia cozinhar, hoje não sabe fazer nada. Sim, as pessoas querem liberdade, mas agora as mulheres confundem liberdade com libertinagem”. Juan casou cinco vezes, resta saber se, como escreveu David Mourão Ferreira sobre si mesmo: “Todas por amor, talvez isso sirva de atenuante.”

Na parede há uma lista de medidas do governo socialista, como sejam a lei antitabaco ou a carta de condução por pontos (que nos primeiros meses desceu a sinistralidade em 30 por cento). Essa lista fecha com uma referência à legalização do casamento entre homossexuais: “Estes socialistas só governam a pensar em como te enrabar, que foi para isso que legalizaram tal coisa”.

Com a hegemonia do seu discurso, Juan secundariza a comida do restaurante. Gosta de ser contrário. Gosta da atenção. “Viram-me na televisão, na semana passada?”. O espectáculo de Juan, perdido no tempo, podia até ser inofensivo. Mas tudo se agrava quando se percebe como os clientes acham graça aos seus comentários, ou se riem quando Juan, diante da bandeira franquista, estica o braço e faz a saudação romana. Os clientes gostam das ideias de Juan, embora nunca o admitam no escritório. Não estão ali apenas pelo presunto. Terá sido essa cumplicidade rançosa, entre Juan e os seus clientes, que levou um crítico gastronómico a escrever que saiu do restaurante com o estômago desarranjado.

De novo na estrada, a inglesa partilha o mal estar físico do crítico gastronómico. Diz que em Inglaterra há radicais, racistas, espancadores de negros, gente extremista que assusta. Mas não existe, como em Espanha, uma memória tão presente – na cultura, na educação, nos hábitos, no vocabulário – de um regime que tanto danificou um país, que assassinou e torturou milhares de pessoas, e que, ainda assim, continua a ser celebrado, mesmo que seja numa espécie de túnel de tempo, na estrada entre Madrid e Sevilha.

O sol entra em percurso descendente, os mosquitos suicidam-se contra o pára-brisas, os lagares de azeite empestam a paisagem. Paramos em Villa del Río. E se ainda não tivessemos compreendido a importância do calor na definição das rotinas, uma senhora ajudou-nos: “Uma esplanada? São sete da tarde, meus filhos, ninguém está numa esplanada tão cedo”.

Paramos outra vez. Primeiro na estação de serviço de Guarromán, onde os autocarros que fazem o percurso entre Madrid e Sevilha mudam de motorista. Os passageiros abastecem-se de comida. Dentro da zona de fumadores, como num aquário, três homens de cabelo branco destacam-se. São camionistas britânicos, que percorrem o caminho do norte de Inglaterra ao sul de Espanha há mais de 30 anos. Têm barrigas e dedos amarelos. Estão gastos. E surpreendem pela sua eloquência e capacidade de observação. São camionistas que percebem de sarcasmo: “Em Espanha não se guia, faz-se pontaria”.

Pouco quilómetros depois, as placas que indicam uma zona de descanso aparecem em árabe. Há um milhão de imigrantes muçulmanos em Espanha, 450 mesquitas legais, 200 sem licença. Na estação de serviço Jaima Park (saída 283), a hospitalidade de Maki para com os dois únicos não muçulmanos na sala, contrasta com a ideia de um possível conflito de civilizações. Maki nasceu em Tânger e tem saudades do mar. Mas ali, no centro da Andaluzia, faz mais dinheiro. É um dos 850 mil marroquinos que trabalha em Espanha, a maioria na hotelaria, agricultura ou construção. Serve-nos chá de menta. Fala dos três milhões de marroquinos que, a viver na Europa, cruzam Espanha durante os meses de verão, para passarem férias no seu país. “Já podem comer a sua comida na estrada, antes traziam de casa e comiam debaixo de sol”. Os carros, lá fora, têm caixas no tejadilho, panos a tapar as janelas. Os marroquinos são conhecidos por, pelo menos na estrada, serem viajantes com excesso de bagagem, e de passageiros.

Em Jaima Park, há avisos em francês e árabe, que anunciam comida Halal, ou seja, que respeita a lei islâmica. Não se encontra uma bebida alcoólica. Cinco minutos e três quilómetros antes, tínhamos estado com camionistas ingleses, bebedores de álcool (quando não conduzem), diante de um cartaz que anunciava: “Tipologia do presunto”.

Na chegada a Sevilha, depois de 12 horas na estrada, os termómetros mostravam temperaturas mais altas que Madrid, e insanidade de alguns detalhes durante o percurso não nos permitiu escapar ao perigo da demência. Mas quando nos pomos em movimento ganhamos perspectiva, fazemos perguntas, exercitamos a habilidade para viver. A A4 pode ser vista como um freak show, o retrato sociólgico de um país, ou mesmo uma comédia de costumes. O autor Pío Baroja, escreveu: “O nacionalismo cura-se viajando”. E o comodismo também. No final, não se tratou de uma fuga ao calor, mas de uma solução para a facilidade de estar sempre no mesmo lugar.

1 comentário:

Tudo de mim. Ou quase. disse...

Pouco importa...
que saias à rua em Novembro de havaianas com dragões e listas douradas, ou uses em Julho gola alta;
que comas num tasco qualquer perdido numa ruela escondida da cidade ou no melhor restaurante, desde que mantenhas os cotovelos afastados da mesa;
que escrevas em jornais; em cadernos que não encontras ou folhas desordenadas, guardadas em gavetas.

Pouco importa. Desde que continues a escrever.

E sim, a propósito de um post qualquer que ficou para trás, ainda vale a pena ser-se sério. E adormecer tranquilamente com a certeza, mesmo que inconsciente, disso mesmo.

Beijo