segunda-feira, 5 de abril de 2010

Algumas crónicas da semana passada, no jornal i


Os carentes

Ontem, dia das mentiras, os jornais puseram-se a brincar com as notícias. Por isso, demorei a perceber o que seria verdade e o que seriam patranhas de primeiro de Abril. Por exemplo, vi imagens do socialista João Cravinho, que dizia: “É preciso despartidarizar a administração pública e nomear por mérito profissional”. Trata-se, estou certo, de uma mentira e de uma montagem das palavras do ex-ministro. Onde é que já se viu um político reconhecer que todos os governos, incluindo os governos do seu partido, preferem dar emprego aos seu cães de fila? Saí de casa. Na banca de jornais, o Correio da Manhã informava: “Luvas de 6,4 milhões para políticos. Quatro membros do governo PSD/CDS estão na mira da investigação”. Dizem-me as estatísticas que só pode ser mentira: não me lembro de nenhum governante condenado por corrupção em quase 36 anos de democracia. Caso houvesse políticos corruptos, andariam a mentir-nos compulsivamente há três décadas. Não é possível. Para resolver as dúvidas, recorri às palavras do psiquiatra Rui Coelho, na TSF: “Quando confrontado com os factos [o mentiroso patológico] poderá até sentir-se obrigado a mudar de residência ou de emprego.” Digo eu: se os nossos políticos continuam por cá, nos mesmos empregos, então é porque não mentem – ou ninguém os confronta. O psiquiatra também disse: “Há a mentira de auto-preservação, para ser aceite, para obter o afecto do outro”. Está explicado: se os políticos mentem, não é mais que carência, afinal, eles só querem o nosso amor.



Portugal v Grécia

Diante de Maria Kyriakopoulou, em Madrid, não passaram dois segundos até que ela referisse, com o sorriso dos vencedores, a final desgraçada do Euro 2004. Por estes dias, mostro-lhe Lisboa, e ela espanta-se com a serenidade, a beleza e o potencial da cidade. Chegou a parar numa imobiliária para ver preços de casas. Diz-me que não há voos directos entre Atenas e Lisboa: “Os senhores da Europa não querem estes países juntos.” Comparamos os dois povos e, a meio do almoço, garante-me que a preguiça do serviço de mesas é igual na Grécia e em Portugal. Quero que goste da minha cidade e mostro-lhe o Tejo num miradouro. Ela está convencida. Responde-me com uma descrição das ilhas gregas. Há uma sintonia e uma partilha que talvez não conseguisse com um alemão. Somos, eu e Maria, filhos de países pobres que se comportam como novos ricos. Conhecemos o melhor destas nações mas tememos que o desperdício das oportunidades, nos últimos 30 anos, tenha causado demasiados estragos no coração do povo. Explico-lhe que 48 anos de uma ditadura pobre, liderada por um merceeiro cruel, nos domesticaram o sangue. Ela responde que os turcos ocuparam a Grécia durante cinco séculos. E pergunta-me se, como no seu país, por causa do plano de austeridade do governo, não saímos para a rua com pedras e paus e carros incendiados. Penso no PEC, na greve dos enfermeiros, na ocupação do centro de saúde de Valença. Não me lembro das últimas granadas de gás lacrimogéneo nas ruas. O nosso povo é sereno. Talvez isso sossegue os senhores da Europa.



Em nome do senhor

De certa maneira, a religião é como uma pulsão sexual: tanto pode resultar em coisas boas (amor em movimento), como pode resultar em coisas pésimas (violações, abusos e maltratos). Para cada missionário que acredita na bondade para melhorar a condição humana, há outro religioso com um cinto de explosivos, disposto a rebentar-se em nome de deus. No fim de semana, nos Estados Unidos, o FBI desmantelou uma milícia que se preparava para matar polícias e que acredita num combate entre os cristãos e o diabo. Segundo uma sondagem recente, um quarto dos votantes no Partido Republicano acredita que Obama é o anticristo e quase metade defende que é muçulmano. Esta milícia pretendia iniciar uma onda de violência para derrubar o governo de Obama. Na segunda feira, no metro de Moscovo, duas bombistas suicidas mataram pelo menos 38 pessoas. Os primeiros dados da investigação apontam responsabilidades aos islamistas radicais – sejam eles da Chechénia sejam da Al-Qaeda. Nos Estados Unidos, as milícias têm a sua origem na pobreza, na ignorância atroz, e no medo do desconhecido, um medo que foi insuflado por Bush filho como estratégia política. Na Rússia, trata-se, em parte, do resultado da jihad nascida após a guerra da Chechénia. Todo este ódio podia acontecer sem o apelo religioso? Podia, mas a religião potencializa o ódio como o álcool potencializa a euforia. É tudo culpa da religião? Não, também é culpa da nossa natureza. Um exemplo: depois do atentado em Moscovo, em vez de ajudar a resolver o caos, os taxistas aumentaram dez vezes o preço das tarifas.

Metrópolis


José Carrilho, num quiosque no Rossio, e David Simon, antigo repórter do Baltimore Sun, têm desilusões e esperanças comuns. Simon abandonou o jornalismo, amargado, para escrever séries celebradas pela crítica. Carrilho, após 18 anos a vender jornais, entregou o quiosque ao filho, tomando conta do negócio ao fim-de-semana: “Os jornais afastaram as pessoas. Fazem grandes títulos e lá dentro não há nada.”. Sobre um colega no Baltimore Sun, que fabricava citações, Simon disse ao editor: “Talvez ele ganhe um [prémio] Pulitzer, mas é possível que tenha de devolvê-lo.” Carrilho não gosta da guerra, entre jornais, feita através da oferta de brindes. Simon critica o recurso a estagiários baratos e a obsessão pelo lucro dos grupos editoriais. Carrilho trabalhou 20 anos na Lisnave: “Em Portugal fazia-se tudo, como se faz agora nos países emergentes, mas já não se faz nada”. Na série criada por Simon, The Wire – a melhor da década para a revista Time –, uma personagem fala da desolação do estaleiro de Baltimore, transformado em condomínios de luxo: “Costumávamos fazer coisas neste país, construir coisas.” Carrilho e Simon, tão distantes na geografia e na formação, querem apenas o bem das cidades onde vivem e a seriedade profissional de quem as relata. Simon disse numa entrevista: “Os carros de Baltimore deviam ter um autocolante: se não consegues viver aqui não estás bom da cabeça”. Carrilho disse-me, depois de receber o dinheiro de uma senhora indecisa entre a Tv Guia e a Vip: “Eu adoro Lisboa, sou lisboeta, percebe?”

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