sexta-feira, 10 de abril de 2009

Escrever pode matar










“Ponha a secretária no canto e, sempre que se sentar para escrever, lembre-se porque motivo ela não está no meio da sala. A vida não é um sistema de suporte da arte. É o contrário”.

Stephen King, em “Escrever, Memórias de um Ofício”


Naquele quarto de motel, tinha programado ficar grávida do melhor amigo do meu pai – um escritor com prémios internacionais, fotografado para revistas, protagonista de anúncios de roupa interior e praticante de sexo com mulheres casadas, menores de idade ou imigrantes ilegais no país. Primeiro, despiu-me o uniforme do colégio, em seguida, porque tinha duas ex-mulheres e filhos da minha idade, deu-me moedas. Disse-me para as despejar na máquina de preservativos colada na parede do corredor.

Nesse tempo, eu acreditava em pessoas geniais, proprietários de bibliotecas e descodificadores dos gestos dos humanos, gente que me resgataria da vulgaridade de uma vida definida por programas de televisão e noites de cinema mais barato. O meu escritor seria aquele lugar de segurança, entre o braço e o antebraço, a que me agarraria quando subíssemos a escadas de um teatro no dia de estreia.

Mas os meus projectos de grandiosidade acabaram num quarto de motel: o meu escritor deitado no chão, muito morto, e eu segurando uma caixa de preservativos (seis, anatómicos, abertura fácil), com frio nos pés (tinha saído descalça), e sem sentir a urgência de gritar. Só a minha ansiedade (queria-o dentro de mim, queria tanto um filho) me aproximou do cadáver, um homem ainda tão brilhante como nas fotografias das produções de moda. Na cabeça dele encontrei uma nódoa, um círculo de pólvora e sangue que se abria na testa, essa marca que as pistolas imprimem na pele dos que são executados.

Não me assustei. Ele estava deitado de costas, em cuecas e meias pretas, num quarto com uma bola de espelhos e aquários sem água onde piscavam peixes de néon. Nesse momento, não me preocupou a possibilidade de um interrogatório policial, a farda do colégio católico (embora eu estivesse no último ano da universidade) que ele me pedira para recuperar do armário; não entrei em pânico com a hipótese de um telefonema a pedir auxílio ao meu pai, financiador do meu curso de Economia no estrangeiro e que me julgava a três horas de avião; também não temi os jornais que me escolheriam como personagem secundária (a jovem amante do génio literário) no enredo de um crime em que, como sempre acontecera em festas, relações amorosas, ou apenas no acto de comprar um jornal, ele seria o único protagonista.

Toquei-lhe numa das coxas peludas com o dedo grande do pé. Não se moveu. Pensei que talvez fosse um dos seus expedientes para conseguir reacções dramáticas da assistência e, mais tarde, transformá-las em contos ou romances. Ele tinha convivido com matadores profissionais, actrizes porno reformadas, terroristas adolescentes com ambições de se explodirem diante de uma câmara de televisão. Passava muito tempo sozinho, dedicava-se ao egoísmo, um requisito que declarava ser inevitável a toda a criação. Dizia-o com a glória de quem descobriu a cura para uma epidemia, mas aliava sempre essa afirmação magnânima a um gesto prosaico, como tirar um pedra de gelo do copo, com os dedos, para metê-la na boca. Gostava do reconhecimento das massas, embora manifestasse, com frequência, asco pelos outros homens e mulheres. No entanto, porque queria que as pessoas reagissem à sua presença com o mesmo espanto com que liam os seus livros, dispunha de habilidades de convívio social que tanto seduziam participantes de um jantar de gala como auditórios cheios de estudantes. Se ele aparecia, e falava, e punha o corpo todo naquilo que fazia, era impossível o rumor de qualquer conversa paralela.

Voltei a vestir-me, pus-me de joelhos (a saia do colégio, pequena para as minha ancas de mulher, apertava-me) e tentei perceber se ele respirava. Estava morto. Mesmo. O meu sobressalto foi rápido. Uma birra de criança. Talvez tenha batido com os pés na alcatifa, guinchado um pouco, da mesma maneira que fazem os animais pequenos – por um instante, acreditei que aquela morte me ia impedir de fazer, com a ajuda do material genético do escritor, uma contribuição triunfal para a história da evolução da espécie.

Mas depressa deixei de me preocupar com o morto. Pensei apenas em mim. Dediquei-me a sair dali sem que se pudesse provar a minha presença naquele quarto. Ninguém sabia que estava de regresso ao meu país para um encontro com fins de procriação. Tínhamos entrado pela garagem. Estudei os móveis e os lugares onde poderia ter pousado os dedos. Tinha apenas uma mochila com pouca roupa. O bilhete de avião na carteira. Bastava sair pela garagem, limpar as impressões digitais no carro, e esperar no aeroporto pelo voo da manhã seguinte.

Não posso dizer que, naquela tarde, tivesse organizado a minha fuga e a anulação de provas com a mesma clarividência que mostro nesta descrição. Mas, se analisados retroactivamente, os acontecimentos que nos põem de pernas para o ar perdem sempre as qualidades instintivas (salvar-me, sair dali, não ser apanhada) e ganham propriedades literárias (tudo bem explicado em parágrafos temáticos, protagonistas eloquentes, os sentimentos dissecados e em ordem, uma perfeita linha cronológica).

Essa mesma tendência para enfeitar o passado, para condensá-lo numa lista de melhores momentos da memória, aplica-se também ao aparecimento do escritor na minha adolescência doméstica, quando, na companhia das minhas irmãs, de pijama e cabelo de champô, sentíamos a sua boca nas nossas bochechas (no canto dos nossos lábios), as suas mãos a apertar as nossas cinturas:

“Durmam bem, minhas queridas” – os dedos dele faziam mais força depois da vírgula que partia a frase em dois momentos: primeiro ternura, depois uma promessa que ainda não percebíamos. Estes eram os seus gestos se jantava na nossa sala. Um hábito que nos agradava. No dia seguinte, escrevia-lhe cartas que nunca entreguei, passava as aulas de educação física sentada (“Professor, estou com o período, não posso correr”), a fim de planear idas ao cinema com o meu marido escritor, passeios de bicicleta e cigarros depois do sexo (tinha começado a fumar, mas era virgem).

Nas férias de verão, ele ficava duas semanas na nossa casa de praia. O seu magnetismo literário ainda não funcionava com adolescentes (estávamos proibidas de ler os seus livros), por isso fazia truques de magia, corria na areia ao fim da tarde, e andava sempre de calções, o tronco e os bíceps nus para admiração das três irmãs. Também era comum encontrá-lo na televisão, ou em revistas que o mostravam em festas com namoradas magras e a prazo, e onde se percebiam as mãos das modelos agarrando o espaço que só a mim poderia pertencer (o avesso do cotovelo, o meu futuro, o suporte da minha vida).

Se, durante um almoço, ele exibia o seu humor, dizendo aos meus pais:
“Tenho de decidir com qual das vossas filhas vou casar”, a audiência respondia com risos, mas eu fechava a boca para esconder o aparelho, esforçava-me para ser mais mulher. Começara a frequentar uma manicura, insistia em depilar pêlos que ainda não destoavam na minha pele, memorizava frases dos clássicos da literatura.

Na tarde em que todos foram passear de barco, informei a minha família que tinha de trabalhar nos meus poemas. Disse-o porque não podia usar maquilhagem ou aparecer de toalha diante do escritor. Os meus sonetos, e o interesse que podiam produzir, substituíam a minha insuficiência sexual. Poucos minutos depois, ele disse que não se sentia bem, recusando o passeio no mar a fim de responder a algumas cartas.

Cansei-me depressa de contar sílabas e de procurar no dicionário palavras que rimassem. Vesti o biquíni para dar um mergulho e, ao passar pelo quarto do escritor, reparei que não tinha fechado a porta, ao contrário do que era costume se estava a escrever. Enquadrei-me na ombreira, o contorno do meu corpo entre quatro arestas, uma moldura para a minha beleza que ninguém ainda soubera manipular.

Não dispunha de frases que funcionassem como um strip tease dos nossos impulsos, esses diálogos de bar de hotel em que as insinuações e as piadas servem para afiar o desejo e indagar a compatibilidade na cama. Não saberia fazê-lo. Mas tinha no meu corpo a mais poderosa eloquência. Bastava estar ali, com as ancas ainda em crescimento, o peito pequeno, forçando a pele, para que me transformasse na surpresa de uma estreia.

Levou-me para o meu quarto. Sentou-se numa cadeira e pôs-me em cima dele, as minhas costas coladas no seu peito, as minhas coxas copiando as suas, os meus pés sem chegar ao chão. Depois guiou os meus dedos. Não me tocou, deixou apenas a sua mão sobre a minha, um peso masculino, uma segurança que eu desconhecia. Mordia-me os ombros, e sempre que me informava do que me iria fazer quando eu alcançasse a maioridade (“Pôr-te de gatas”), a mão dele estremecia, cobrindo a minha, pressionando mais, controlando-me como uma marioneta. Lembro-me desse momento que antecede o orgasmo, em que o carro em que viajamos pode despistar-se e apontar ao poste na berma, esse instante de abandono a outra coisa que já não somos nós (somos um bicho), em que nada mais importa, a entrega sem contrapartidas, o prazer pelo qual nos ofereceríamos numa mesa de sacrifício (“Estou aqui, acaba comigo agora”); e o meu pescoço pronto, as minhas veias tão redondas, um homem a inaugurar-me sem que precisasse sequer de entrar em mim.

Eram assim os meses de praia. Ele chegava com as suas malas, por vezes com uma namorada, sentava-se à mesa do pequeno-almoço sem camisa, dançava com as minhas irmãs (talvez as tenha sentado de costas para ele, aquela mão pesando sobre elas).

Uma vez, trouxe consigo um estudante de literatura, que fazia investigação para um trabalho académico. O rapaz tinha um penteado tímido e mostrava a subserviência dos beatos perante a doutrina do sacerdote. Carregava-lhe as malas, lambia os selos das cartas, despejava cinzeiros e, durante um jantar, ouviu a sentença do escritor:
“Sabes que nunca vais ser tão famoso como eu, não sabes?”

De todos essas semanas, lembro-me ainda de um poeta, exilado no nosso país, que foi entregar um manuscrito ao meu escritor. Como se faz com os mendigos, o meu escritor mandou preparar-lhe uma refeição para levar, manteve-o na cozinha, e pediu um bilhete de autocarro à empregada para que o poeta pudesse regressar a casa. Nunca chegou a abrir o manuscrito.

Houve uma mulher que não cheguei a ver. Ela tentava gritar, mas a voz emagrecia a meio das frases. Nesse mesmo dia, encontrei madeixas do cabelo da mulher no quarto dele. Semanas antes, o meu escritor dissera-lhe que não podia acompanhar uma pessoa com cancro – não aguentaria a decadência da beleza, as sessões de choro, as esperas no hospital, o confronto com inconsistência do corpo humano, os preparativos para a morte; o meu escritor não dispunha de tempo, tinha de escrever.

Depois, fui estudar para o estrangeiro – estudar no estrangeiro era, para os meus pais e seus amigos, como um adereço de moda, talvez um casaco de peles; era um emblema de classe, tal como os carros que guiávamos, as palavras do nosso vocabulário, ou essa maneira de nos distinguirmos dos demais, que consistia em nos cumprimentarmos com apenas um beijo. Nós de um lado, eles do outro. Um beijo apenas mantinha-nos seguros da nossa condição especial, erguia mais alto as paredes dos nossos condomínios com piscinas, palmeiras e mulheres adeptas da lipoaspiração.

Quando regressava ao meu país, nas férias, ele facilitava-me a entrada em clubes nocturnos, levava-me para a mesa dos seus amigos, seres prodigiosos em que me queria transformar. Tratava-me como uma adulta. Comprava-me presentes. Pedia-me que continuasse a vestir o uniforme do colégio. Levou-me a casa, de madrugada e, com os meus pais a dormir no segundo andar, deitou-me no chão, sobre uma almofada que me erguia o centro do corpo, levantou-me as pernas, afastou-me as cuecas para o lado direito, não me chegou a tirar o soutien.

Nunca te contei nada isto. Faço-o por necessidade e porque espero que colabores comigo. Confesso-te agora que, quando abandonei aquele quarto de motel, com o meu futuro baleado na cabeça, comecei a perceber que seria escritora. És a primeira pessoa que fica a saber que, há quarenta anos, estava a forçar moedas numa máquina de preservativos, no corredor de outro piso, enquanto alguém disparava uma pistola com silenciador. Jamais se soube o que aconteceu, a polícia não encontrou um culpado, embora houvesse muitos suspeitos. O meu ex-escritor tinha uma pulsão para experimentar as pessoas, para habitá-las, para esquecê-las e, em seguida, conseguir a distância necessária para usar tudo o que recolhera – os maneirismos, as cicatrizes, e os segredos de traficantes de armas, de veteranos de guerra, de mulheres abandonadas. Ele precisava de toda essa gente de maneira a conseguir os prémios, o dinheiro, as viagens, as mulheres que, quando pediam um autógrafo num dos livros, recebiam também um número de telefone e um convite.

És meu editor desde o meu primeiro romance. És meu amigo. Sou madrinha da tua filha. Quero pedir-te que me apoies nesta decisão. E não aceito que recuses a minha proposta. Se o fizeres mudo de editora. Estou a escrever um livro sobre essa tarde no motel. Não tenho medo, muito menos vergonha ou nojo. Não receio magoar os outros. Se assim fosse, nunca teria sido escritora. Há demasiados danos colaterais neste ofício. E um bom escritor não tem de ser uma boa pessoa.

Não sabia que tinha esta vocação até ter eliminado, com a maior diligência, as minhas impressões digitais nos móveis daquele quarto. O desprendimento e o pragmatismo que me empurraram para fora do motel foram uma revelação – afinal, não precisava de ser rebocada pelo génio de outros. Descobri que tinha a capacidade clínica de pegar nos sentimentos, nas desgraças, na euforia, com se equipada de luvas de borracha e máscara, para fazer de tudo isso algo melhor, um processo de ascensão que resultaria numa obra-prima da literatura. Se vou a um funeral levo o meu bloco de notas. Interrompo amigos desesperados pela fuga de uma mulher para tirar apontamentos. Sou igual ao homem morto na alcatifa de um motel. Tenho esse talento, comum aos psicopatas e aos escritores, de apenas me importar com a minha arte. Tu, como tantos jornalistas, perguntaste-me muitas vezes quando decidira começar a escrever. Respondo-te agora. No mesmo dia em que, vestindo um uniforme de colégio, depois de pintar os lábios e pentear-me ao espelho, abandonei o meu primeiro cadáver.


Hugo Gonçalves, Janeiro de 2007

Conto publicado na revista Egoísta

4 comentários:

Anónimo disse...

Ainda bem que existem blogs. É tão mais fácil encontrar os teus textos e poder saboreá-los...
Um beijo,
HC

Rita disse...

Era este. Exactamente :)

Catarina Bandeira disse...

"descobri-te" no jornal do lux e tornei-me fã. muitos parabéns, é um prazer enorme ler tudo o que escreves. Tenho, claro, de sublinhar a genialidade do "elogio da crise".....muito inspirador.
Beijinhos

Pedro disse...

excepcional



"com se equipada de luvas de borracha e máscara"

com -> como?