quinta-feira, 30 de abril de 2009

Caralivro


Texto publicado no jornal do Lux

Se o título deste artigo fosse facebook conseguiria muito mais leitores – o que só prova que as redes sociais de internet já fazem parte do dia. E da noite. Nada disto é científico, claro. Muito menos este texto (mesmo que diga a verdade).

Hugo Gonçalves

O facebook permite-nos ser glamorosomente interessantes mesmo que estejamos em casa de cuecas, ou no escritório, enquanto esperamos uma reunião com pessoas que não lavam o cabelo com a devida frequência. No escritório, estamos debaixo de luzes fluorescentes, agoniados pelo bolo alimentar do colega que mastiga a sandes de carne assada. Mas abrimos o Facebook e, de repente, estamos noutro lado, onde podemos partilhar um vídeo de Dean Martin a cantar “Sway”, e recriar um sentimento de copo de whisky na mão, smoking com o laço maltratado e a possibilidade de um romance que dure até de manhã. Não estamos sozinhos: somos generosos ao ponto de partilhar a banda sonora do nosso dia com os duzentos amigos da nossa rede social de internet. Também eles, ainda que por dois minutos, estão com vontade de deslizar pelo chão e cantar: “When marimbas rythms star to play dance with me make me sway”.

Para a maioria das pessoas a vida é como o Fernando: umas vezes a pé, outras vezes andando. Ou seja, aborrecida e conformada. Condição que se agrava se tivermos em conta que a maioria das pessoas não faz o que gosta: seja lamber envelopes ou usar máquinas de calcular para fechar balanços.

Como dizia Tom Wolf: “A realidade é um bom sítio para visitar mas eu não viveria lá”. Claro que Wolf se referia à realidade de lamber envelopes enquanto se vê telenovelas.

O facebook não tem as qualidades risonhas do Prozac, mas parece-me ser um estímulo para que as pessoas ponham a cabeça a funcionar (um bocadinho mais).

No facebook recuperou-se esse espírito de competição e vaidade (tudo coisas boas, já vão perceber) que tínhamos nas salas de aula – queremos ser engraçados, interessantes, atraentes. Queremos acreditar que temos alguma coisa para partilhar e que as nossas ideias ou gostos irão tocar os outros, melhorar-lhes o dia durante uns segundos.

O facebook faz-nos mais interessados e mais generosos – seja a partilha de uma notícia do Jakarta Post, uma petição para que os bares do Bairro Alto fechem depois da duas, uma canção da Likke Li (descobri-a no facebook através de uma amiga) ou uma frase do John Updike (esta usei-a eu): “Somos seres criadores, potentes e plásticos, o mundo na nossas mãos. Estamos a brincar com dinamite.” Ou outra, menos literariamente pretenciosa, de uma amiga, que melhorou a qualidade cómica do meu dia: “Tenho dois grandalhões a montar-me um armário em casa e estou razoavelmente agradada com a circunstância”.

O Facebook é o liceu, o bairro, a rua. O princípio é o mesmo: dar e receber informação e querer que os outros gostem de nós e do que temos para dizer. Trata-se da mesma alegria que sentíamos ao partilhar um disco novo, no recreio, ou o mesmo desassossego se conversávamos com a miúda de aparelho nos dentes que, embora de ançaime metálico temporário, continuava a dar cartas no campeonato de beleza do liceu. O facebook são os humanos a serem humanos.

Mas quando os humanos são humanos também mandam para a prisão quem afirma que a terra é que dá voltas ao sol. E é por isso que há uma certa sobranceria em relação ao facebook. Uma desconfiança – a mesma desconfiança que o meu pai tem em utilizar o multibanco; a mesma desconfiança que as pessoas da alta cultura (lol) têm quando olham para tudo o que esteja abaixo de Brecht e dos romancistas russos; a mesma desconfiança que se tem com as coisas novas que nos afectam a vida mas que ainda não conseguimos compreender muito bem.

E se houve gente que se assustou com moda da Bota Botilde, dos Tamagochis ou das camisas de cornucópias, é normal que se assuste com o facebook. Porque, como quase tudo na vida, o facebook também traz consigo lixo (se eu quisesse responder a questionários sobre qual é a minha cor preferida tinha ficado no infantário). O facebook é como as drogas: a sua natureza é boa ou má consoante a utilização que fazemos delas. Beatles = drogas = Penny Lane. Nicole Anne Smith = drogas = suicidio. Há quem passe dias na palheta no facebook deixando a produção do país na agonia dos calinas. Há quem tenha a capacidade para esgalhar um bom comentário em menos de cinco segundos e continuar com a sua vida. Eu tenho a sorte de ter amigos que dizem coisas de jeito, capazes de fabricar maravilhosos pensamentos incomuns sobre coisas comuns. Se há pessoas com amigos facebookianos que escrevem com a mão esmagadora das coisas chatas e vulgares, o problema não é meu.

Neste texto falo apenas do aspecto criativo e entretido do facebook, porque esta rede pode ser utilizada para trabalho, para consciencialização social e provavelmente para muitas outras coisas que valham a pena – como prova a campanha eleitoral de Barack Obama. Mas isso é uma história mais séria. Prefiro dizer que me divirto e que produzo no facebook. Uso-o como laboratório para outras coisas que escrevo. Invento frases. Exploro ideias. Descubro livros, música, notícias, o sentido de humor dos meus amigos.

Nunca falhei um compromisso de trabalho por causa do facebook. Nunca confundi o mundo real com as janelinhas de chat. Tenho amigos de carne e ossos lindos que me abraçam, saio para a rua (mais até do que devia), conheço pessoas novas (ao vivo) sem precisar de as adicionar no facebook. Continuo, imagine-se, a ler coisas em papel, a praticar relações de cama e a observar as pessoas na Praça do Rossio. O facebook ainda não me comeu as entranhas do cranio nem fez de mim um robôt ao serviço da vulgaridade.

O facebook é, afinal, como as sestas de quinze minutos aconselhadas pelos médicos. Fazem-nos bem, ajudam a revigorizar o corpo e potencializam a criatividade. Mas o facebook também é deliciosamente inútil, como são tantas vezes as conversas entre amigos, cara a cara, com risos sonoro e copos de amêndoa amarga com muito gelo e sumo de limão. Essa é a piada da leveza absurda das coisas, porque a vida é demasiado importante para se levar a sério. E mesmo que o facebook venha a ter o mesmo tempo de influência nas nossas vidas que teve a Bota Botilde, resta-me a alegria de, após ter convidado os meus amigos facebookianos a encontrar palavras lusitanas, fazer aqui um best off dessa recolha: biltre, gandim, sarrabulho, intigamente, ósdepois, vou cânhemãe ao médico dos pézes, regabofe, rambóia, tufunaste, biciclete, camionete, salxixa, espilrro, patife, catota, bardajona, moleirinha, catrapisca, torresmo, burrié, galhofa, curaçã, médico-da-caixa, sarrabeco, lambisgóia, sirigaita, rabiló, coninhas, panhonha e escanifobético.

E agora digam-me que o facebook não presta.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Só em Lisboa


No bairro da Bica, ontem: ver a bola internacional num plasma, comer chouriço e beber minis pretas na sede do Grupo Excursionista Vai Tu. De seguida, um quase jantar num restaurante chamado Tu Cá Tu Lá. Mesmo em frente da minha casa: pastelaria Dom Tretas. Também gostava de ter semanas de férias com bilhete de avião e hotel incluído de cada vez que encontro um restaurante O Cantinho.

ps - reparem no símbolo do Grupo Excursionista Vai Tu, tem um dedo indicador a mandar os outros em excursões a Badajoz, como quem diz, vai tu, eu fico aqui a esvaziar minis na inclinação improvável do bairro da Bica.

domingo, 26 de abril de 2009

sábado, 25 de abril de 2009

Este País de Coninhas ou 25 de Abril Sempre


Virei uma bandeira ao contrário, filmei-a, e as imagens passam agora na Sic Radical, em forma de promo para o programa Esplendor de Portugal. Segundo um artigo do Diário de Notícias pode ser grave. Para o deputado Osvaldo Castro, do PS, parece até que dá direito a intervenção judicial. O que eu realmente gosto? Que isto tenha acontecido no dia 25 de Abril. Oh my sweet baby Jesus.

Tive a sorte de ter crescido em democracia e estou muito, mesmo muito, grato por poder escrever num blog, num jornal, até numa parede, sem me arriscar a levar umas bolachadas de uns senhores da polícia. Mas a gratidão não desagua na acomodação, e é por isso que a mesma democracia que celebro é a democracia a quem, caso fosse eu jogador de futebol, faria uma entrada a pés juntos sempre que necessário.

Para perceber melhor as consequências da minha inquietação com o estado das coisas, pergunto ao deputado Osvaldo Castro, ou a quem saiba, se também corro o risco de ofender a Nação ao usar cuecas com a bandeira (já as vi à venda). Ou quando as marcas comerciais, quase sempre em tempo de jogos da selecção, aproveitam a bandeira para vender cerveja e cartões de crédito. Ou quando o Deco não canta o hino. Também gostaria de saber se são ofensivas as milhares de bandeiras mordidas, estioladas, cagadas, que se encontram nas varandas do nosso país, herança dessa propaganda de Luiz Felipe Scolari, durante o Euro 2004, quando o torneio se transformou num símbolo da nossa História, seja pela pertinência dos estádios construídos seja pela confirmação do nosso carácter maníaco depressivo: um dia histéricos com o futebol, outro dia fadistas com o resto da vida.


O deputado Osvaldo é presidente da Comissão parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias e gostava de perguntar-lhe se é uma ofensa a um símbolo intocável (o próprio povo da Nação), eu viver num país onde a corrupção não só é praticada como é aceite pela sociedade com um piscar cúmplice de olhos, onde as pessoas se matam nas estradas, onde durante décadas se produziram paisagens suburbanas que parecem um lego comido por uma praga de gafanhotos, onde a Justiça funciona pior que uma associação de estudantes de liceu, onde jornalistas e políticos existem no seu mundo alternativo de frases feitas e folhetim, uma espécie de reality show que busca votos e audiências.


Diz o DN:

"O site (da Presidência da República) lembra expressamente que o artigo 332.º do Código Penal pune com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias 'quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa'.

Face a este dispositivo de defesa penal da bandeira, Osvaldo de Castro considera que qualquer 'juiz sensato considerará que a utilização dada pela SIC-Radical não se justifica'."

Gostava de dizer ao presidente da Comissão parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias, que me sinto com o direito de virar a bandeira ao contrário, com a liberdade para defender a minha decisão e com a garantia de que o bom senso importa mais que o gosto pelas minudências legais.

Um dia perguntaram a uma bailarina russa, depois de uma actuação, qual era o significado do seu espectáculo. Ela respondeu: "Se pudesse explicar, não precisava de estar uma hora e meia em palco."

Ter de explicar porque virei a bandeira ao contrário, ter de explicar o contexto em que isso foi feito (promoção de um programa de televisão sobre um país que, sim, eu acho que está de pernas para o ar), ter de explicar que não há alí um exercício de traição ou de cospe na cara do pai, parece-me tão desnecessário como o ultraje que as pessoas possam sentir ao ver o escudo e as quinas a fazer pino.

No dia 25 de Abril de 2009 esperava que uma ofensa aos símbolos nacionais fosse muito mais que uma promo de tv, e que a capacidade de provocar fizesse parte da nossa disposição mental de ex-carneirinhos no rebanho do pastor Salazar.

Nunca fui grande ouvinte de canções de intervenção mas hoje dei por mim a cantar o "Agora, o povo unido nunca mais será vencido", que tocava na rádio da mercearia da minha rua. Com dois queijos frescos na mão e um croissant de chocolate, pensei: "Tenho duas hipóteses, sempre tive. Ou digo 25 de Abril Sempre. Ou digo Méeee!"

Passo seguinte: içar o Cristiano Ronaldo numa grua. De pernas para o ar.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Retrato do escritor enquanto na tv



Esta é a primeira promo do programa Esplendor de Portugal, uma série de nove documentários sobre o que significa ser português hoje. Estreia no santo dia 13 de Maio, na Sic Radical. Amén.

Dia mundial do livro?


Sempre ouvir dizer que Portugal é um país de escritores. Errado. Um país sem leitores dificilmente produz escritores. Somos o segundo país da UE que menos lê, 63 por cento dos portugueses não pegaram num livro no último mês. Quando questionados sobre o livro que leram recentemente, a maioria respondeu "Equador". Ser escritor em Portugal é mais ou menos como ser portageiro: passam por nós, mas ninguém nos liga. Não há em mim tendências maoistas que queiram educar o povo através do chicote. Mas é uma pena que desprezemos a leitura desta maneira. Não o digo como escritor mas como alguém que acha que os livros são - como algumas drogas, a música ou a paternidade - excelentes aceleradores da evolução humana.

Cada vez se lê menos em Portugal e, no entanto, nunca estive tão seguro ou feliz com a minha escolha. Isto de escrever tem muita graça. E é melhor que trabalhar num escritório com luzes fluorescentes no tecto e máquinas que fornecem chocolates e batatas fritas no corredor. Por outras palavras, não lusitanas: beats working.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Sobre como os empregados de pastelaria e os comentadores desportivos não páram de me surpreender


1.
Nas Portas de Santo Antão, ao Rossio, o empregado com cabelo de piaçaba moderno, resplandecendo a dureza do gel, espera o meu pedido. Nas suas costas sandes de panado e de filetes. Bolas de berlim ressacadas. Mil folhas com anemia. E as bebidas expostas são para consumo da casa.

Eu: Queria uma sandes de carne assada. Para levar, por favor.

Ele: Para levar embrulhada ou na barriga?

2.
Narrador do F.C Porto v Manchester United, entre o registo Tv Turbo e Fashion TV:

"Se há o vermelho Ferrari também há o azul Futebol Clube do Porto".

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Escrever pode matar










“Ponha a secretária no canto e, sempre que se sentar para escrever, lembre-se porque motivo ela não está no meio da sala. A vida não é um sistema de suporte da arte. É o contrário”.

Stephen King, em “Escrever, Memórias de um Ofício”


Naquele quarto de motel, tinha programado ficar grávida do melhor amigo do meu pai – um escritor com prémios internacionais, fotografado para revistas, protagonista de anúncios de roupa interior e praticante de sexo com mulheres casadas, menores de idade ou imigrantes ilegais no país. Primeiro, despiu-me o uniforme do colégio, em seguida, porque tinha duas ex-mulheres e filhos da minha idade, deu-me moedas. Disse-me para as despejar na máquina de preservativos colada na parede do corredor.

Nesse tempo, eu acreditava em pessoas geniais, proprietários de bibliotecas e descodificadores dos gestos dos humanos, gente que me resgataria da vulgaridade de uma vida definida por programas de televisão e noites de cinema mais barato. O meu escritor seria aquele lugar de segurança, entre o braço e o antebraço, a que me agarraria quando subíssemos a escadas de um teatro no dia de estreia.

Mas os meus projectos de grandiosidade acabaram num quarto de motel: o meu escritor deitado no chão, muito morto, e eu segurando uma caixa de preservativos (seis, anatómicos, abertura fácil), com frio nos pés (tinha saído descalça), e sem sentir a urgência de gritar. Só a minha ansiedade (queria-o dentro de mim, queria tanto um filho) me aproximou do cadáver, um homem ainda tão brilhante como nas fotografias das produções de moda. Na cabeça dele encontrei uma nódoa, um círculo de pólvora e sangue que se abria na testa, essa marca que as pistolas imprimem na pele dos que são executados.

Não me assustei. Ele estava deitado de costas, em cuecas e meias pretas, num quarto com uma bola de espelhos e aquários sem água onde piscavam peixes de néon. Nesse momento, não me preocupou a possibilidade de um interrogatório policial, a farda do colégio católico (embora eu estivesse no último ano da universidade) que ele me pedira para recuperar do armário; não entrei em pânico com a hipótese de um telefonema a pedir auxílio ao meu pai, financiador do meu curso de Economia no estrangeiro e que me julgava a três horas de avião; também não temi os jornais que me escolheriam como personagem secundária (a jovem amante do génio literário) no enredo de um crime em que, como sempre acontecera em festas, relações amorosas, ou apenas no acto de comprar um jornal, ele seria o único protagonista.

Toquei-lhe numa das coxas peludas com o dedo grande do pé. Não se moveu. Pensei que talvez fosse um dos seus expedientes para conseguir reacções dramáticas da assistência e, mais tarde, transformá-las em contos ou romances. Ele tinha convivido com matadores profissionais, actrizes porno reformadas, terroristas adolescentes com ambições de se explodirem diante de uma câmara de televisão. Passava muito tempo sozinho, dedicava-se ao egoísmo, um requisito que declarava ser inevitável a toda a criação. Dizia-o com a glória de quem descobriu a cura para uma epidemia, mas aliava sempre essa afirmação magnânima a um gesto prosaico, como tirar um pedra de gelo do copo, com os dedos, para metê-la na boca. Gostava do reconhecimento das massas, embora manifestasse, com frequência, asco pelos outros homens e mulheres. No entanto, porque queria que as pessoas reagissem à sua presença com o mesmo espanto com que liam os seus livros, dispunha de habilidades de convívio social que tanto seduziam participantes de um jantar de gala como auditórios cheios de estudantes. Se ele aparecia, e falava, e punha o corpo todo naquilo que fazia, era impossível o rumor de qualquer conversa paralela.

Voltei a vestir-me, pus-me de joelhos (a saia do colégio, pequena para as minha ancas de mulher, apertava-me) e tentei perceber se ele respirava. Estava morto. Mesmo. O meu sobressalto foi rápido. Uma birra de criança. Talvez tenha batido com os pés na alcatifa, guinchado um pouco, da mesma maneira que fazem os animais pequenos – por um instante, acreditei que aquela morte me ia impedir de fazer, com a ajuda do material genético do escritor, uma contribuição triunfal para a história da evolução da espécie.

Mas depressa deixei de me preocupar com o morto. Pensei apenas em mim. Dediquei-me a sair dali sem que se pudesse provar a minha presença naquele quarto. Ninguém sabia que estava de regresso ao meu país para um encontro com fins de procriação. Tínhamos entrado pela garagem. Estudei os móveis e os lugares onde poderia ter pousado os dedos. Tinha apenas uma mochila com pouca roupa. O bilhete de avião na carteira. Bastava sair pela garagem, limpar as impressões digitais no carro, e esperar no aeroporto pelo voo da manhã seguinte.

Não posso dizer que, naquela tarde, tivesse organizado a minha fuga e a anulação de provas com a mesma clarividência que mostro nesta descrição. Mas, se analisados retroactivamente, os acontecimentos que nos põem de pernas para o ar perdem sempre as qualidades instintivas (salvar-me, sair dali, não ser apanhada) e ganham propriedades literárias (tudo bem explicado em parágrafos temáticos, protagonistas eloquentes, os sentimentos dissecados e em ordem, uma perfeita linha cronológica).

Essa mesma tendência para enfeitar o passado, para condensá-lo numa lista de melhores momentos da memória, aplica-se também ao aparecimento do escritor na minha adolescência doméstica, quando, na companhia das minhas irmãs, de pijama e cabelo de champô, sentíamos a sua boca nas nossas bochechas (no canto dos nossos lábios), as suas mãos a apertar as nossas cinturas:

“Durmam bem, minhas queridas” – os dedos dele faziam mais força depois da vírgula que partia a frase em dois momentos: primeiro ternura, depois uma promessa que ainda não percebíamos. Estes eram os seus gestos se jantava na nossa sala. Um hábito que nos agradava. No dia seguinte, escrevia-lhe cartas que nunca entreguei, passava as aulas de educação física sentada (“Professor, estou com o período, não posso correr”), a fim de planear idas ao cinema com o meu marido escritor, passeios de bicicleta e cigarros depois do sexo (tinha começado a fumar, mas era virgem).

Nas férias de verão, ele ficava duas semanas na nossa casa de praia. O seu magnetismo literário ainda não funcionava com adolescentes (estávamos proibidas de ler os seus livros), por isso fazia truques de magia, corria na areia ao fim da tarde, e andava sempre de calções, o tronco e os bíceps nus para admiração das três irmãs. Também era comum encontrá-lo na televisão, ou em revistas que o mostravam em festas com namoradas magras e a prazo, e onde se percebiam as mãos das modelos agarrando o espaço que só a mim poderia pertencer (o avesso do cotovelo, o meu futuro, o suporte da minha vida).

Se, durante um almoço, ele exibia o seu humor, dizendo aos meus pais:
“Tenho de decidir com qual das vossas filhas vou casar”, a audiência respondia com risos, mas eu fechava a boca para esconder o aparelho, esforçava-me para ser mais mulher. Começara a frequentar uma manicura, insistia em depilar pêlos que ainda não destoavam na minha pele, memorizava frases dos clássicos da literatura.

Na tarde em que todos foram passear de barco, informei a minha família que tinha de trabalhar nos meus poemas. Disse-o porque não podia usar maquilhagem ou aparecer de toalha diante do escritor. Os meus sonetos, e o interesse que podiam produzir, substituíam a minha insuficiência sexual. Poucos minutos depois, ele disse que não se sentia bem, recusando o passeio no mar a fim de responder a algumas cartas.

Cansei-me depressa de contar sílabas e de procurar no dicionário palavras que rimassem. Vesti o biquíni para dar um mergulho e, ao passar pelo quarto do escritor, reparei que não tinha fechado a porta, ao contrário do que era costume se estava a escrever. Enquadrei-me na ombreira, o contorno do meu corpo entre quatro arestas, uma moldura para a minha beleza que ninguém ainda soubera manipular.

Não dispunha de frases que funcionassem como um strip tease dos nossos impulsos, esses diálogos de bar de hotel em que as insinuações e as piadas servem para afiar o desejo e indagar a compatibilidade na cama. Não saberia fazê-lo. Mas tinha no meu corpo a mais poderosa eloquência. Bastava estar ali, com as ancas ainda em crescimento, o peito pequeno, forçando a pele, para que me transformasse na surpresa de uma estreia.

Levou-me para o meu quarto. Sentou-se numa cadeira e pôs-me em cima dele, as minhas costas coladas no seu peito, as minhas coxas copiando as suas, os meus pés sem chegar ao chão. Depois guiou os meus dedos. Não me tocou, deixou apenas a sua mão sobre a minha, um peso masculino, uma segurança que eu desconhecia. Mordia-me os ombros, e sempre que me informava do que me iria fazer quando eu alcançasse a maioridade (“Pôr-te de gatas”), a mão dele estremecia, cobrindo a minha, pressionando mais, controlando-me como uma marioneta. Lembro-me desse momento que antecede o orgasmo, em que o carro em que viajamos pode despistar-se e apontar ao poste na berma, esse instante de abandono a outra coisa que já não somos nós (somos um bicho), em que nada mais importa, a entrega sem contrapartidas, o prazer pelo qual nos ofereceríamos numa mesa de sacrifício (“Estou aqui, acaba comigo agora”); e o meu pescoço pronto, as minhas veias tão redondas, um homem a inaugurar-me sem que precisasse sequer de entrar em mim.

Eram assim os meses de praia. Ele chegava com as suas malas, por vezes com uma namorada, sentava-se à mesa do pequeno-almoço sem camisa, dançava com as minhas irmãs (talvez as tenha sentado de costas para ele, aquela mão pesando sobre elas).

Uma vez, trouxe consigo um estudante de literatura, que fazia investigação para um trabalho académico. O rapaz tinha um penteado tímido e mostrava a subserviência dos beatos perante a doutrina do sacerdote. Carregava-lhe as malas, lambia os selos das cartas, despejava cinzeiros e, durante um jantar, ouviu a sentença do escritor:
“Sabes que nunca vais ser tão famoso como eu, não sabes?”

De todos essas semanas, lembro-me ainda de um poeta, exilado no nosso país, que foi entregar um manuscrito ao meu escritor. Como se faz com os mendigos, o meu escritor mandou preparar-lhe uma refeição para levar, manteve-o na cozinha, e pediu um bilhete de autocarro à empregada para que o poeta pudesse regressar a casa. Nunca chegou a abrir o manuscrito.

Houve uma mulher que não cheguei a ver. Ela tentava gritar, mas a voz emagrecia a meio das frases. Nesse mesmo dia, encontrei madeixas do cabelo da mulher no quarto dele. Semanas antes, o meu escritor dissera-lhe que não podia acompanhar uma pessoa com cancro – não aguentaria a decadência da beleza, as sessões de choro, as esperas no hospital, o confronto com inconsistência do corpo humano, os preparativos para a morte; o meu escritor não dispunha de tempo, tinha de escrever.

Depois, fui estudar para o estrangeiro – estudar no estrangeiro era, para os meus pais e seus amigos, como um adereço de moda, talvez um casaco de peles; era um emblema de classe, tal como os carros que guiávamos, as palavras do nosso vocabulário, ou essa maneira de nos distinguirmos dos demais, que consistia em nos cumprimentarmos com apenas um beijo. Nós de um lado, eles do outro. Um beijo apenas mantinha-nos seguros da nossa condição especial, erguia mais alto as paredes dos nossos condomínios com piscinas, palmeiras e mulheres adeptas da lipoaspiração.

Quando regressava ao meu país, nas férias, ele facilitava-me a entrada em clubes nocturnos, levava-me para a mesa dos seus amigos, seres prodigiosos em que me queria transformar. Tratava-me como uma adulta. Comprava-me presentes. Pedia-me que continuasse a vestir o uniforme do colégio. Levou-me a casa, de madrugada e, com os meus pais a dormir no segundo andar, deitou-me no chão, sobre uma almofada que me erguia o centro do corpo, levantou-me as pernas, afastou-me as cuecas para o lado direito, não me chegou a tirar o soutien.

Nunca te contei nada isto. Faço-o por necessidade e porque espero que colabores comigo. Confesso-te agora que, quando abandonei aquele quarto de motel, com o meu futuro baleado na cabeça, comecei a perceber que seria escritora. És a primeira pessoa que fica a saber que, há quarenta anos, estava a forçar moedas numa máquina de preservativos, no corredor de outro piso, enquanto alguém disparava uma pistola com silenciador. Jamais se soube o que aconteceu, a polícia não encontrou um culpado, embora houvesse muitos suspeitos. O meu ex-escritor tinha uma pulsão para experimentar as pessoas, para habitá-las, para esquecê-las e, em seguida, conseguir a distância necessária para usar tudo o que recolhera – os maneirismos, as cicatrizes, e os segredos de traficantes de armas, de veteranos de guerra, de mulheres abandonadas. Ele precisava de toda essa gente de maneira a conseguir os prémios, o dinheiro, as viagens, as mulheres que, quando pediam um autógrafo num dos livros, recebiam também um número de telefone e um convite.

És meu editor desde o meu primeiro romance. És meu amigo. Sou madrinha da tua filha. Quero pedir-te que me apoies nesta decisão. E não aceito que recuses a minha proposta. Se o fizeres mudo de editora. Estou a escrever um livro sobre essa tarde no motel. Não tenho medo, muito menos vergonha ou nojo. Não receio magoar os outros. Se assim fosse, nunca teria sido escritora. Há demasiados danos colaterais neste ofício. E um bom escritor não tem de ser uma boa pessoa.

Não sabia que tinha esta vocação até ter eliminado, com a maior diligência, as minhas impressões digitais nos móveis daquele quarto. O desprendimento e o pragmatismo que me empurraram para fora do motel foram uma revelação – afinal, não precisava de ser rebocada pelo génio de outros. Descobri que tinha a capacidade clínica de pegar nos sentimentos, nas desgraças, na euforia, com se equipada de luvas de borracha e máscara, para fazer de tudo isso algo melhor, um processo de ascensão que resultaria numa obra-prima da literatura. Se vou a um funeral levo o meu bloco de notas. Interrompo amigos desesperados pela fuga de uma mulher para tirar apontamentos. Sou igual ao homem morto na alcatifa de um motel. Tenho esse talento, comum aos psicopatas e aos escritores, de apenas me importar com a minha arte. Tu, como tantos jornalistas, perguntaste-me muitas vezes quando decidira começar a escrever. Respondo-te agora. No mesmo dia em que, vestindo um uniforme de colégio, depois de pintar os lábios e pentear-me ao espelho, abandonei o meu primeiro cadáver.


Hugo Gonçalves, Janeiro de 2007

Conto publicado na revista Egoísta

segunda-feira, 6 de abril de 2009

O encanto assassino das cockteasers


(Texto publicado no jornal do Lux)

São imbatíveis, fascinantes e úteis para o ecossistema dos humanos. Diante de uma cockteaser, e mesmo com as probabilidades em contra, quase sempre os homens vão a jogo.


Há mulheres que se parecem com Fidel Castro: carismáticas e poderosas, mulheres que usam esse encanto para produzir ilusões. Mas o povo, apesar das consecutivas promessas, continua a passar fome. Para essas mulheres, tal como acontece em Cuba, a revolução está sempre em movimento mas não chega a lado algum. Ninguém as apanha, quase ninguém põe as mãos nessa delirante fronteira entre o limite da meia que aperta a coxa e o princípio da virilha. São as cockteasers.

Embora outras línguas disponham de palavras para designar esse tipo de mulheres (calienta pollas em espanhol, rôtisseuses em francês), em Portugal ainda nos falta uma designação eficaz que traduza a capacidade feminina para atrair e jamais cumprir. São mulheres que manipulam os pretendentes como se fossem campeãs de concursos de yo-yo: o homem pendurado de um fiozinho, em redor do dedo, movendo-se continuamente para cima e para baixo. São provocadoras de erecções que nunca saem das calças. Regem-se pelas regras dos museus: podem olhar mas não toquem. Mulheres microondas. Mulheres que nos fazem esperar na fila e, chegada a nossa vez, nos mandam regressar no dia seguinte.

Estas mulheres desempenham um papel fundamental na explicação da natureza masculina: os homens precisam de caçar, mesmo que a presa tenha a velocidade inalcançável de uma chita. Nas palavras do comediante Bill Maher: “Não se pode reformar a biologia (dos homens). E já agora: a pulsão masculina para espalhar a nossa semente é a razão pela qual somos uma espécie de sucesso.”

Mas se, por um lado, estas mulheres confirmam a herança genética, ainda hoje em vigor, dos homens das cavernas (engravida quem puderes para que a espécie sobreviva), por outro lado desactivam o derradeiro objectivo da masculinidade do caçador – podes correr, rapaz, mas nunca me vais apanhar. O jogo é tão infantil e emocionante como os desenhos animados do Tom & Jerry. E os homens caem com frequência numa perseguição que dificilmente conseguem ganhar. Os homens são o gato Tom, rápidos mas inevitavelmente esborrachados contra uma das paredes da casa.

Já vi homens perdidos e deslumbrados com uma alça do sutiã a espreitar entre o ombro e o vestido. Já fui beato de movimentos de dança que, embora aprendidos em aulas privadas de varão, não passam de coreografias assexuadas. Quando estas mulheres prendem o cabelo, estão a dizer: “Sou gira, sou boa, tenho a capacidade de asfixiar-te com as minhas pernas e de oferecer-te lindos bebés.” E mesmo os homens que se julgam conhecedores das regras de ataque e das artimanhas das cockteasers, transformam-se em carrinhos telecomandados que batem uma e outra vez contra a parede.

Conheço quem tenha ido a Paris, depois de uma promissora troca de mensagens escritas, para se encontrar com uma italiana que conhecera em Turim, e tenha acabado a dormir na mesma cama de hotel como se dormisse com a irmã. Ela disse-lhe, no primeiro dia: “Tenho namorado há uma semana.” Numa só noite, partilhei sonhos de jogos de ténis e brunchs cinematográficos com uma loira internacional, cujos lábios pareciam prometer horas e horas de beijos na boca no sofá, para depois vê-la sair da festa de mão dada com o ex-namorado. O homem que diz que nunca foi apanhado nessa teia, em que a expectativa se transforma em burla, mente tanto como o homem que diz: “Isto nunca me aconteceu, é a primeira vez, devo ter bebido de mais.”

Estas mulheres não potencializam apenas o rabo saliente pelo efeito dos saltos altos, a mamas que o Senhor (ou o senhor cirurgião) lhes deu, o cheiro tão promissor como uma sesta alcoolizada na sombra de um toldo de praia. São também experientes comunicadoras, inteligentes no uso da informação, assertivas nas insinuações e nas retiradas. Estudam as mensagens e os emails. Têm o talento de um escritor de romances policiais e a habilidade de mãos de um operador de fantoches. Se houver um sentido de justiça histórico talvez os homens mereçam chegar a casa com dores dentro dos boxers depois de uma noite de toureio. E embora não acredite que, se as mulheres mandassem, as guerras acabavam de vez, concedo-lhes sem resistência essa oportunidade para usarem os homens como anti-depressivos, ou súbditos do seu poder, ou acessórios de moda.

As cockteasers são descendentes das sereias tentadoras e assassinas que cantaram para Ulisses – fornecem drama, entretenimento e pequenas tragédias. Fazem parte das regras da atracção dos adultos. Contudo, os homens costumam pensar que uma cockteaser é tão desonesta como quem aponta uma arma quando não tem coragem de apertar o gatilho. Comportamo-nos como os utentes de um parque de diversões que correm para a montanha russa mas, a meio da subida, já estão a pedir para abortar a viagem. Todos sabemos, mesmo quando despejamos um saco de areia nos próprios olhos, que só vai a jogo quem quer. E mesmo que a casa ganhe sempre, os casinos continuam a estar cheios. É a implacável pulsão do jogo.

sábado, 4 de abril de 2009

Sexual Healing


Repara: se eu pousar a língua no teu umbigo, os pêlos quase transparentes da tua barriga elevam-se; sentes os músculos do pescoço estenderem-se como se te espreguiçasses; tens mais saliva na boca; agora queres mais - sei isso porque me puxas os cabelos da nuca, um só movimento, como um castigo, depois largas-me. Uso os lábios (ao mesmo tempo que a língua) e o teu umbigo entra-me na boca. Sentes a pressão húmida e estável. Depois os dentes marcam-te a pele. Dói-te um pouco e então os músculos estendem-se mais, as pernas desabam para os lados, preparam-se.

"Tira tudo", dizes, mas páras a tarefa de desapertar-me os botões da camisa para me morderes o queixo.

"Vira-te", digo, e alongas o corpo na cama, a barriga cola-se no lençól, exibes - sabes que se trata de exibicionismo - a curva que transforma as costas em rabo. Dizes, enquanto passas aí os dedos: "Em inglês esta parte chama-se Small of a woman's back." Em seguida (como se em vez de perguntar, estivesses a pedir): "Vais-me comer?"

Basta que respire sobre essa curva no teu corpo e afastas-te do lençol, as ancas elevam-se, começas a ficar um bicho.

Falas: "Diz tudo o que quiseres, tudo o que te passar pela cabeça. Mesmo tudo."

Meto-te um polegar na boca, puxo-te para mim, sei que precisas de estar aqui com o corpo todo. Vai começar tudo outra vez e acabamos sempre num sítio diferente.

Nunca falámos de livros muito menos dos nossos pais.

Não existimos além deste quarto.

E, no entanto, precisamos de ser bichos aqui (tão bichos) para podermos continuar a ser pessoas lá fora.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Greed is not good, mister Gordon Gekko


Talvez seja mesmo tempo para que o lucro deixe de ser o principal objectivo da actividade humana.