domingo, 31 de maio de 2009

Gajos & Paneleiros


(Texto publicado no jornal do Lux)

O rapazes que gostam de raparigas temem os rapazes que gostam de rapazes. E acham que as coisas de macho a sério são exclusivas dos heterossexuais. Mas tantas vezes os hetero são mais mariquinhas que os homo.

Hugo Gonçalves

Os homens hetero têm medo dos homens gay. Medo do contágio da outra orientação sexual, medo que pensem que são panascas. Um exemplo: eu e um dos meus irmãos, na fila do supermercado. Os dois sem barriga e com cara de quem usa creme depois de fazer a barba. Perante o olhar dos estranhos, um de nós disse: “Devem pensar que somos panilas.” Outro exemplo: há uns anos, em Nova Iorque, uma portuguesa cruzou-se comigo num restaurante, tínhamos amigos em comum, mas nessa noite nem falámos. Na segunda vez que estivemos frente-a-frente, e passámos ao jogo do álcool e da sedução nocturna, ela disse: “Pensei que fosses gay.” Eu, um pouco insultado, com as sobrancelhas a subir na testa, questionei: “Porquê?”. E ela, aliviada com a afirmação da minha heterossexualidade, pronta a esquecer as minhas escolhas de vestuário, respondeu: “Porque tinhas uma camisola de gola alta”. Um derradeiro e inesperado exemplo: estou a escrever este texto, agora mesmo, num café do Chiado. O empregado, estrangeiro, cabelo rapado e bicépes de pesos e halteres, inicia uma conversa comigo em inglês. Penso se será homossexual, analiso as suas intenções quando pergunta sobre o meu sotaque excessivamente americanizado. Desconfio. Mas será que a empregada atrás do balcão, de lábios cor de cereja e barriga desvendada, teve também esta pulsão de levantar a guarda quando tentei ser engraçado com ela, apenas há alguns minutos?

Aos gays, tenho de agradecer uma melhoria acentuada na minha sensibilidade: quando caminhei a primeira vez na Cristopher Street, em Nova Iorque, rua tão gay como as cuecas de António Variações, senti-me incomodado com a quantidade de homens que forçavam uma troca de olhares ou que analisavam a parte traseira dos meus jeans. Desde esse momento, fiquei mais sensível à paciência e desespero das mulheres, todos os dias, diante das abordagens masculinas – os piropos chapa cinco, a baba invisível, esse esgar facial de comia-te toda.
Desde pequeno aprendi que “Paneleiro do caralho” era um insulto eficaz entre heterossexuais. Fui criado num meio masculino em que a homossexualidade era uma aberração, uma fragilidade imperdoável, um motivo de exclusão – por tudo isto, chamar paneleiro a um hetero resultava (e ainda resulta) numa comum e poderosa forma de ataque. No meu colégio, um aluno novo, com gestos efeminados e pouco talento futebolístico, foi continuamente chamado de “Maricas” e gozado pela sua forma de andar. Tenho agora a certeza que lhe fizemos mal.

Em adulto comecei a conhecer gays, a trabalhar com eles, e tentei perceber o que assusta tanto os heterossexuais, o que os deixa como homens nus, em pânico, num campo de urtigas, se por acaso entram num bar gay, ainda que acompanhados de mulheres. Os hetero conhecem a natureza masculina. Por isso, suspeitam que a necessidade de levar alguém para a cama se agrava num ambiente exclusivo a homens. Pensam: tantos gajos juntos? Só pode acabar em festival da mangueira. Quando os heteros – como eu em Cristopher Street – se encontram na posição de zebras na savana, em vez de galifões no piso do meio da Kapital, perdem o peito feito, apertam um botão da camisa e sentem-se como a miúda de calções de ganga que tem de passar todos os dias por um prédio em construção.

Mas se os heteros receiam a alegada promiscuidade dos gays – porque a reconhecem em si próprios –, há também toda uma doutrinação anti-homossexual que leva anos a limpar dos cérebros. Ouvi mais que uma vez, mesmo que em tom de brincadeira, pessoas que diziam: “Antes um filho agarrado que um filho rabo.” Cresci com a obrigatoriedade adolescente de mostrar que era homem através de bebedeiras de black out, do gosto pela velocidade nas estradas e da contabilização das miúdas que tiravam a roupa e que iam até ao fim. Para muitos heteros ser homem é ser tudo isto. E ser gay é um atentado ao orgulho másculo. Como se apenas os heteros detivessem o monopólio da mudança de pneus ou das vitórias nas cenas de porrada. Não podemos esquecer que António Oliveira, ex-seleccionador nacional, afirmou que não há jogadores de futebol homossexuais. E que o avô de um amigo meu, coronel na reserva, dizia durante a nossa adolescência: “Todos os que parecem são e ainda há os que não parecem e são” – a ameaça, a conspiração, a peste, o medo lançado sobre nós como uma rede apertada a fim de nos manter no exército hetero.

No outro dia, no elevador da Glória, um turista belga e um brasileiro imigrante encontravam-se em estado de engate romântico. Procuravam, como acontece quando os intervenientes não dominam o mesmo idioma, coisas comuns para comunicar (“Gostou de visitar o Brasil?”), coisas entediantes para quem está de fora mas essenciais para quem quer meter-se dentro do lençóis. E eu, observador do engate, rapaz armado ao moderno, que já não precisa de dizer que tem um amigo gay para ser do grupo dos bons, que é a favor do casamento e da adopção por casais do mesmo sexo, que se está nas tintas para quem as pessoas comem, pus os auscultadores nas orelhas e apaguei o meu desconforto com música.

No filme “Rachel Getting Married”, que tem lugar no sofisticado, literário e rico estado norte-americano do Connecticut, não é a raça dos noivos (ele preto, ela branca) que tem qualquer importância dramática. Nesse Connecticut cinematográfico já se vivia num estado pós Obama mesmo antes de Obama ser presidente. Um preto e uma branca de mão dada fazem parte da casa. Não chocam. A raça deixou de ser relevante para a narrativa.

Quando saí do elevador da Glória e comecei a pensar neste texto, lamentei não ter alcançado ainda, na sua plenitude, um estado mental do género Connecticut, onde já não houvesse um passado com avós homofobos e boatos mesquinhos sobre o primeiro-ministro. Eu já deveria estar totalmente limpo dessa propaganda suja com que cresci, mas ainda não estou. Sobram recantos por varrer. Pensei ainda que muitos heteros vão pensar que este texto é tão panilas como a colecção integral de Will & Grace ou um broche a um desconhecido na casa de banho do Trumps. E isso, para ser sincero, não me importa mesmo nada: ser heterossexal não é uma benção, nem uma medalha, nem sequer a normalidade por tantos desejada. É apenas um acaso.

5 comentários:

Anterus Belchans disse...

Quando uma vez tentei dar a entender à minha avozinha (ainda que, na brincadeira) que se calhar gostava mais de zangões do que abelhas-rainha, ela benzeu-se três vezes enquanto lengalengueava: 'Ai filho, antes morto, preso ou na droga, do que paneleiro!'.

Todos crescemos com esse estigma. No fundo, hoje em dia, já não há homens e já não há mulheres. Há pessoas.

A opção, essa, sempre existiu.

Girl disse...

Gostei muito do texto, como sempre.

Concordo na íntegra.

Parabéns pelo blogue.
:)

alma-em-4-corpos disse...

viver, dá-nos a oportunidade de ir varrendo os tais recantos.

que bem que se escreve, por aqui.
obrigada por partilhares "connosco"
:)

guardanapo branco disse...

do tamanho de uma ervilha este mundo tem muito mais graça! e... surpresa, das surpresas: ter segurado este texto nas minhas mãos há uma semana atrás. =)

AnaLee disse...

Parabéns,fantástico texto!