quinta-feira, 5 de março de 2009

Senhor Urbino e Dona Susete, os fazedores de sonhos


(Texto publicado no jornal do Lux)

O país decorou casas, restaurantes e salas de aeroporto com televisões. O vício intensifica-se, mas a droga tem cada vez menos qualidade. Não podemos viver com a tv. Não podemos viver sem a tv.

Hugo Gonçalves

Depois de contemplar a caixa de cartão durante mais de uma semana, fantasiando com a felicidade e o estatuto que nos daria o seu conteúdo, eu e os meus irmãos esperámos que todos os outros presentes de Natal fossem abertos e, por fim, as nossas mãos pudessem rasgar o cartão e oferecer-nos o futuro. Só podia ser um leitor de vídeo, dizíamos. Afinal, na minha turma de 35 alunos mais de metade já gravava os seus programas preferidos ou alugava o “Conan, o Bárbaro” em vídeo clubes. Só podia ser, além do mais, um VHS, uma vez que os Beta estavam a ser ultrapassados pelo novo formato tão rapidamente como os blusões de penas Duffy tinham ficado fora de moda. Dentro da caixa? Um presunto, oferta de um cliente do meu pai.

O desgosto marcou de tal forma a memória desse Natal, que ainda hoje, entre os irmãos, e com sentido de humor, se conta essa história. A verdade é que a televisão (e o vídeo como upgrade da televisão) se tornara no centro sólido da nossa coexistência doméstica. No início da adolescência criou-se a Sala da Televisão – ninguém na minha família se lembraria duma sala de leitura mas, ao menos, também não se lembraram de uma sala de tortura.

O comando da tv era muito mais que o ceptro do tirano do sofá. Os meus pais tinham a sua própria televisão no quarto (havia várias lá em casa, hoje ainda mais). Como tal, a sala onde os filhos disputavam o comando poderia muito bem ter-se tornado numa versão (classe média e meninos da linha) do “Senhor das Moscas”. Contudo, e apesar dos conflitos, estabeleceram-se regras entre os rapazes. O primeiro a chegar detinha o comando. Caso o seu critério de zapping desagradasse aos restantes irmãos, o gestor do comando teria de aceitar a escolha da maioria, mas mantinha a posse do objecto: a televisão era demasiado importante nas nossas vidas para que a desordem social impedisse o seu regular funcionamento. Como obedientes soldados da revolução cultural, não queríamos interromper o grande líder.

Claro que havia a escola, o futebol na rua, as bicicletas em cavalinho e as miúdas que teimavam em ficar-se pelos primeiros números do bate pé. Mas também havia horas marcadas para o Duarte & Companhia, o MacGyver, a Crónica do Crime, o Agora Escolha, o Tom Swayer ou o Água na Boca, esse concurso soft porn de mamas italianas com que a Sic começou a revolucionar a sexualidade televisiva. Também me lembro do pânico do meu pai a procurar o botão off quando, no filme “O Carteiro toca sempre duas vezes”, Jack Nicholson atirou Jessica Lange para cima de uma mesa e apareceram as ligas, as coxas, o movimento pendular dos dois corpos. No entanto, a Sala da Televisão era quase sempre exclusiva dos filhos. Muitas vezes comíamos ali, com os tabuleiros em cima das pernas e o garfo suspenso diante da boca esperando o próximo rotativo de Chuck Norris.

Os aparelhos televisivos foram aumentando em número e tamanho na casa dos meus pais – nas duas salas, nos quartos, na cozinha. E fora dela também. Hoje, como um ex-fumador intolerante e esquecido do prazer do tabaco, dou por mim ultrajado com a abundância de televisões nos espaços públicos. Nunca vi nada assim. Nos últimos tempos, jantei num restaurante italiano com um ecrã gigante no qual a Eurosport mostrava um campeonato de Poker. Numa tarde de domingo com sol, almocei num restaurante com amplas janelas para o mar, embora fosse um jogo da Taça de Inglaterra que iluminava a sala em diferentes ecrãs. O brilho dispendioso de plasmas e LCDs resplandece nas paredes das pastelarias de bairro: o Goucha, a Fátima Lopes, os directos sobre a alegada prisão de ventre do motorista do autocarro da selecção nacional. No aeroporto, na sala de embarque, pude escolher recentemente entre uma telenovela e uma telenovela. Há televisões em todo o lado. Big brother we are watching you.

Os canais portugueses, tão originais e inovadores como o remake de Vila Faia, não ajudam a que me reconcilie com a minha paixão adolescente. Com o passar do tempo, a televisão portuguesa deixou de ser a miúda que, ingenuamente, achava gira (ou pelo menos fácil), passando a ser a gaja que fala demasiado de si mesma, conseguindo aborrecer até uma caixa de viagra.

O one man show do professor Marcelo foi franchisado pelos comentadores desportivos, por vezes com duração de hora e meia. E, tal como o professor, as suas palavras são transmitidas como uma mensagem papal – TV is God. Quase todos os noticiários principais, agora com a duração de uma longa-metragem, são um batido caramelizado de directos inúteis, telenovelização da realidade, vox populi, casos da vida a motivar a lágrima audiovisual, e reality shows mascarados de informação.

A generalidade da ficção portuguesa reflecte tanto a realidade do país e dos seus habitantes como uma novela sul-americana: gente que parece só falar no sofá, personagens tão interessantes como o olhar de um pombo, ricos e pobres, os muito maus e os muito bonzinhos, a empregada, o miúdo com crista, o maluco do riso.
No entanto, nunca a televisão esteve tão entranhada na vida portuguesa. Essa idosa trindade – Fado, Futebol e Fátima – transformou-se num par de amantes feitos um para o outro e que não quer saber de mais nada. Os noivos: futebol e televisão.

Comecei a ouvir o conselho, “Se não gostas, apaga ou muda de canal”, tornando-me assim num ex-viciado do comando. Mas não consigo evitar a suspeita de que a nossa televisão está a fazer-nos mal, a promover a estupidez, a desinformar, a ficar áquem, a falhar na responsabilidade e no brio profissional Reconheço aqui, como um agarrado depois de uma intervenção nos Narcóticos Anónimos, a influência que a televisão tem (e teve) em mim e na grande maioria dos portugueses. Sei que dou ainda demasiada importância ao que aparece no ecrã.. Para acabar com o meu ultraje, sei que bastava carregar no botão ou que, como fiz em tempos, mais por logística do que por opção, deixasse de ter um aparelho em casa.

Talvez a minha intolerância seja também resultado do que julgo serem ressentimentos. Tenho, em parte por causa da televisão, a capacidade de concentração de uma criança hiperactiva na hora de abrir os presentes de aniversário. Por causa da televisão (e não só) comecei a ler livros demasiado tarde, sendo agora incapaz de afirmar que sou um escritor que lia Céline aos 12 anos enquanto fumava Gitanes e sonhava ter a insolência de Rimbaud. Aos doze anos (Je suis francofonamente désolé) queria um blusão de couro igual ao do Tom Cruise no “Top Gun” e saber quem era a Mulher de Branco em “Roque Santeiro”. Sou um adulto que ainda vacila entre agarrar no comando ou abrir um livro. Por causa da televisão adiei sessões de estudo, atrasei-me para encontros, tornei-me num procrastinador summa cum laude. Na idade adulta, desconfiei da televisão durante muito tempo, porque acendê-la assim que chegava a casa parecia-me ser uma aspirina para a solidão.

Segundo o lema da muito bem sucedida TVI (“A televisão feita por si”), teremos então a televisão que merecemos, ainda que preferisse que fosse feita por gente que percebe do assunto. Ter o senhor Urbino, do quiosque do jornais, a decidir os conteúdos de uma grelha televisiva ou a dona Susete, hipocondríaca faladora, a escrever guiões para séries, não me reaproxima do comando nacional.

Acabei por seguir o mandamento da TVI e faço agora a minha própria televisão. TV, minha ex-amante, “light of my life, fire of my loins. My sin, my soul”, foste trocada pela internet, que tem tudo o que tu tens (as grandes séries, a melhor informação, até a bola), mas sem plásticas, mais fresca, sempre disponível, sublimando todo o teu potencial para fazer o bem e produzir maravilhas (Madmen, Daily Show, The Office, Angels in America). Dizem que uma adição só pode ser substituida por outra. Mas agora mando eu.

3 comentários:

Babe disse...

Como em todo o discurso do drogado, a ilusão do controle do vício!
(diz o roto au nú: "porque não te vestes tu?")

Friendly Fire disse...

Amen.

Friendly Fire disse...

tenho 5 livros para ler mas sei exactamente o que se passou no ultimo episodio do "damages"...