quinta-feira, 24 de setembro de 2009

God complex ou Jesus tinha um trabalho fodido


E lá fui eu, atravessando o jardim com a gratidão de, ao princípio de uma tarde com calor, não estar num escritório entalado entre um menu sandes + bebida + salada de fruta e o brilho de um computador, feliz por estabelecer os meus horários, reparando nos alemães que preparam o Oktoberfest diante da sua embaixada, nos homens de cor de especiarias como jibóias cansadas com turbantes, nos ucranianos gordos, rodeados de patos e galos, no português que, para não manchar a roupa com riscos húmidos de relva, tinha posto um cartão por baixo do seu corpo deitado.

Lá fui eu pensando no que compraria para o almoço quando encontrei uma romena descalça, resplandecendo cansaço e a ferocidade do sol, prostrada no passeio, mesmo ao lado do Pingo Doce. Pensei perguntar-lhe se estava bem, mas segui caminho, desistindo da minha missão ocasional de justiceiro da cidade que discute com homens que mijam na rua e transeuntes que atiram papéis para o chão.

Mas entrei no supermercado e uma senhora velha estava encostada na parede, o seu bigode com esferas de suor, os olhos descaídos de basset hound, as mamas de matrona arfando por oxigénio. Por isso, tive mesmo de perguntar: “A senhora está bem?” E ela disse-me que não tinha tomado o comprimido para a tensão, que não aguentava o punho apertado do calor nas suas veias. Atravessei o supermercado, pedi um copo com água e açúcar na padaria, entreguei-o nas falanges que pareciam raízes de árvore da velha em aflição. Ela bebeu-o de uma só vez como se fosse um praticante do alcoolismo com a esperança de matar o delirium tremens matinal. E depois a surpresa, como se adivinhasse que eu tinha reparado na romena lá fora: “Que vergonha, já não basta a outra na rua. Sou cigana mas não sou da mesma raça, sou cigana mas o meu marido não é”, como se tentasse afastar o seu estado doente da condição mendiga da romena, como se temesse o meu juízo caucasiano. A verdade é que nem tinha percebido que a senhora velha era cigana – nenhuma roupa negra, nenhum lenço apertado entre o cabelo cinzento e o queixo, nem sequer um saco com roupas falsificadas ou qualquer outro lugar comum que definisse a sua tribo.

E enquanto metia fruta nos sacos pensei numa reportagem em que um transsexual no Irão – país com regime homófobo mas que patrocina operações de mudança de sexo – dizia que não gostava de homossexuais. Alguma coisa está mal encaixada no coração das pessoas quando, sendo diferentes da norma, não toleram a diferença dos outros.

Não consegui a mesma irritação diante da cigana em operação de auto-branqueamento racial que experimentei diante do transsexual persa. A cigana era demasiado real, a sua transpiração fria tornava as rugas mais vincadas, o seu pulso tremendo o copo de água estava ali, mesmo ali – o que terá passado por casar com um homem branco? Há quantos anos não fala com a família? Quantas bofetadas terá levado do pai de família ao anunciar a sua ousadia?

A senhora velha pôs-me a mão no ombro:

“O senhor é enfermeiro?”
“Não”.
“Mas preocupa-se com as pessoas.”

E as minhas cordas vocais ocas, um instrumento eléctrico sem amplificador, o meu pulso tremendo também, a urgência de ir entregar um copo de água gelada a uma romena descalça, que recebia o sol na cabeça como se fosse um telhado de zinco.

Mas ela já não estava lá.

3 comentários:

joaninha versus escaravelho disse...

Concluindo: Jesus tinha um trabalho fodido (usando a sua expressão) e não conseguiu cumprir os objectivos propostos.

Tudo de mim. Ou quase. disse...

Pois que Jesus tinha um trabalho fodido, sim senhor...

E, às vezes, a prática do bem não passa de um acto de puro egoísmo. Nem sempre se ajuda outro ser humano para que ele se sinta melhor, mas para os sentirmos melhor. Para darmos algum sentido a uma vida cheia de pressa, com horários estabelecidos, prazos de entrega e pouco espaço de manobra para olharmos para o lado.
Olharmos e vermos realmente o que nos rodeia, funciona como um murro no estômago. O nosso pequeno mundo, cheio de conforto e tecnologia de ponta, é abalado quando confrontado com a realidade do mundo dos outros.
Há muitas romenas dessas. Das que se sentam à porta do Pingo Doce debaixo de um sol abrasador. Há muitas ciganas dessas também.

E agora fico a pensar... Ok, Jesus tinha um trabalho fodido, ou lá o que era. Mas será que ele algum dia chegou a fazer o trabalho que, pelos vistos, lhe competia? É que ele fica com os louros e os outros é que andam a correr pelo Pingo Doce a pedir copos com água e açúcar...

Ah, a propósito, ou não, (mais) um grande texto.

Gustavo Gouveia disse...

Quando oiço histórias desa indole ganho a sensação de que a tendencia natural do homem não é a de ser solidário mas a de, quando pode, discriminar e desprezar os demais pela sua natureza, ou como forma de se colocarem num patamar superior aos dos outros. Um preto que é maltratado em terra de brancos, vai maltratar os brancos quando eles estiverem em minoria. Nos bairros de lata da margem sul predominantemente habitados por angolanos, um cabo-verdiano estaria desgraçado caso tivesse a infeliz ideia de lá pôr o pé. Já conheci homossexuais activos que ridicularizavam os passivos. Parece que é a nossa natureza.

E a pergunta da senhora revela o seu egoísmo, é como quem pensa 'porque raio este gajo me está a ajudar, considerando que eu não lhe vou dar nada? O mais provavel é que lhe paguem pa ele fazer este tipo de merdas...' sem reconhecer que por iniciativa propria se deva dar a mão a ourém. Triste bixo que nós somos