quinta-feira, 10 de setembro de 2009

What the fuck?


No dia do jogo da selecção nacional, na Hungria, o jornal 24 horas apresentava na primeira página uma fotografia do ex-seleccionador, Luiz Felipe Scolari, e anunciava que o brasileiro estaria a rezar a nossa senhora do Caravaggio durante a partida. No texto, que encontrei no site da versão do 24 Horas publicada nos Estados Unidos – peço desculpa mas não comprei o jornal em papel –, o jornalista dizia: “Não é só o povo português que está a rezar por uma presença na grande competição, e que não passa apenas por fé ou rezas (...) Luiz Felipe Scolari, treinador do Bunyodkor, também está a pedir pela Selecção Nacional.”

Embora o 24 Horas ache que as orações de um treinador são suscpetíveis de fazer a primeira página de um jornal, ao menos reconhece que não basta a oração para que uma equipa de futebol ganhe um jogo.

Uma primeira página deveria ser o orgulho dos jornalistas. Mas há quem diga, por exemplo, que o Expresso tem tanta credibilidade que pode estar dentro de um saco plástico, escondendo a primeira página. Muitos são aqueles que compram o Expresso, todos os sábados, sem olhar para o que está dentro de um saco patrocinado por um banco ou uma empresa de telecomunicações. Trata-se do conformismo consumista. O Expresso não é apenas um jornal, é um status quo tão válido na esplanada, durante o pequeno almoço com a família, como os óculos Wayfarer, o carro alemão estacionado no parque ou as férias na Turquia.

No entanto, um jornal não é um carro desportivo. Um jornal é um produto volátil, cuja qualidade e o que tem para oferecer variam todos os dias. O leitores do Expresso deveriam ficar orgulhosos de um jornal que faz valer a sua primeira página em vez de acreditarem que o alegado valor sólido do Expresso (que bom passear o saco pelo pontão do Estoril) permite que o jornal venha empacotado.

Muitos jornais, revistas e televisões usam agora armadilhas e estratégias enganosas para nos prenderem a atenção. Os noticiários agoniam os espectadores com tantas promoções durante o programa: “Não perca, na décima parte deste jornal conheça a desgraça de um agricultor transmontano e das suas abóboras gigantes.” Muitas vezes aquilo que vem na primeira página ou nas promoções dos noticiários nem sequer é bem aquilo que realmente têm para oferecer.

Os jornais e as revistas precisam de vender, claro que sim. Não acredito no modelo romântico do jornalista e da sua cruzada, o jornalista que passa fome e não aprecia a invenção do duche quente. Mas hoje, jornais e televisões comportam-se como empresas produtoras de iogurtes, esquecendo-se que têm uma responsabilidade social. Em muitas redacções não se pensa no que está a acontecer no país e de que forma se pode pegar na realidade e transmiti-la ao público. Pensa-se assim: “O que é que as pessoas gostam?” Está-se a fazer ficção em vez de jornalismo.

Como um director de produto de lacticínios, muitos editores e directores pensam em açucarar a realidade para os leitores com pepitas de chocolate, pedaços de morango, cereais estaladiços, ou seja, com celebridades, especulações e aquilo que Philip Roth descreveu assim: “The triumph of trivialization over tragedy, a global outbreak of sentimentality. From Sidney to Jerusalem to Times Square the recirculating of clichés occurs at super sonic speed. Watching this hyped up production of staged pandemonium I have a sense that the moneyed world is eagerly entering the prosperous dark ages.”

As redacções deveriam ser lugares criativos, de múltiplas opiniões e frequentados por gente inconformista e curiosa. Em vez disso, são muitas vezes linhas de montagem, nas quais os jornalistas, desmotivados e mal pagos, executam apenas as orientações dos directores e as estratégias comerciais impostas pelas administrações. Os jornalistas deveriam ser a primeira linha de massa crítica de um país, no entanto, têm muitas vezes contribuído para a estupidificação dos portugueses, para o encolher de ombros perante o atraso civilizacional e para a glorificação do rumor, da mediocridade e do populismo. Em vez de ser massa crítica são o espelho da preguiça mental do país: sejam as fotos das férias dos portugueses para encher o Jornal da Noite da Sic, sejam os esconderijos dos famosos na capa da Sábado.

O jornal 24 Horas, com Scolari e a santinha na primeira página, é o paroxismo dessa glorificação – embora não seja o único. Mistura a religião com o futebol e com uma celebridade porque acha que os portugueses gostam do bolo. É uma fórmula tão instantânea como o pudim em pó a fim de chegar ao coraçãozinho dos leitores. Uma farsa tão perfeita como a invenção dos alimentos light.

Mas será que o jornalista do 24 Horas acredita mesmo que Portugal estará a rezar à hora do jogo? Os portugueses são mais supersticiosos que religiosos – estão-se nas tintas para as regras do Senhor, não aparecem muito na missa, a menos que seja para casamentos e baptizados, gostam dos feriados religiosos, do folclore gastronómico, do bolo rei, do borrego na Páscoa e daquilo que a religião representa: o conforto de acreditar que há alguém que, no final, tem um plano para nós, o sentimento de pertença, a noção de ordem e disciplina, e esse medinho existencial que leva as pessoas a dizer “Pelo sim pelo não, mais vale acreditar em alguma coisa e fazer parte do rebanho”.

Usar a religião (superstição) dos portugueses e embrulhá-la com futebol para vender jornais é o mesmo que ter uma banquinha, no santuário de Fátima, para vender nossas senhoras em miniatura e camisolas falsificadas do Cristiano Ronaldo.

Mas mesmo que eu esteja errado e seja importante para os portugueses saber que Scolari vai rezar, peço ao 24 Horas que, pelo menos, não fabrique notícias (como se criasse gomas de goiaba para adicionar ao iogurte). É que apesar da fotografia na capa e do título revelador, o jornal nem sequer falou com Scolari.

Querem saber como o 24 Horas descobriu a sua notícia exclusiva? Telefonando para um padre brasileiro que é amigo do treinador. Conta o jornalista: “(...) Lá longe, nos confins do Uzbequistão, Luiz Felipe Scolari, treinador do Bunyodkor, também está a pedir pela Selecção Nacional. Quem o garante é o seu mentor espiritual, o padre Pedro Cunha, igualmente brasileiro, que trabalha na Igreja de Nossa Senhora das Graças, cidade de Passos, Minas Gerais. ‘Tenho a certeza de que Luiz Felipe Scolari está a rezar à Nossa Senhora do Caravaggio por Portugal e de que está a torcer pela vossa selecção’.”

Se o 24 Horas quiser mais notícias exclusivas, basta falar com o senhor do talho da minha rua, que tem a certeza que Sócrates é ladrão, que o Calado era gay, que os McCann mataram a filha e que a Manuela Moura Guedes é um andróide.

É que ao contrário do que diz a TVI – “Televisão feita por si” -, o jornalismo não pode ser apenas um espelho daquilo que os editores acham que os portugueses querem nem pode ser feito pelo senhor do talho. Isso é sacudir a água do capote, é esquivar-se a responsabilidades, é ser o tal sábio que se contenta com o espectáculo do mundo, mesmo que o espectáculo seja tão pobre.

1 comentário:

elisa disse...

Ver telejornais, ler certas notícias deixa-me (quase) sempre de boca aberta, num what the fuck silencioso, à procura de palavras que consigam exprimam a minha indignação por ser tomada por parva.
Encontrei todas elas aqui. Percebo que tenham preferido perder-se neste seu texto:)