quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Feromonas de açúcar


Os homens têm menos capacidade de olfacto que as mulheres. Uma criança tem muito mais papilas gustativas que um velho - daí a nossa excitação infantil com os gelados, o nosso comportamento canino, farejando em redor de uma mesa de aniversário coberta de doces. Por norma, as mulheres associam as memórias da mãe ao seu cheiro. Nós, os humanos, cheiramos e saboreamos, no entanto, somos provavelmente o bicho mais visual de todos os bichos.

Mas há ainda muitos dias em que a nossa programação genética ancestral se põe a mandar no corpo. Como hoje: descia a rua em direcção aos correios. O mar ali ao lado, a praia vazia, os prédios na costa reflectindo o sol, espalhando para todas as direcções a qualidade anti depressiva da luz natural.

E, de repente, cruzei o vapor de alguma pastelaria, partículas que se instalaram ao meu redor, o cheiro das bolas de berlim, o mesmo cheiro que me fazia sair do oceano, em pequeno, abandonando o campeonato de carreirinhas para correr na direcção do chapéu de sol, o quartel general da família: "Mãeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee. Vem aí o homem das bolas de berlim." E a minha mãe, incapaz de perceber onde estava o homem das bolas, mas crente nos meus super poderes de percepção, dobrava-se sobre a sua carteira para encontrar moedas. Eu podia antecipar o homem das bolas mesmo se ele estivesse na outra praia. Nem toldos, nem bolas gigantes da Nivea, nem jogos de raquetes conseguiam ocultar o homem das bolas. Eu sabia exactamente onde ele estava.

Mal tinha as moedas num punho fechado, tão apertado como o coração de uma estátua, corria pela praia derrapando nas curvas, definindo o percurso com a rapidez mental de um agente secreto: saltar por cima daquele colchão, cuidado com a areia no jornal desportivo do homem com a tatuagem, ali tens um pouco de sombra para aliviar os pés em chamas, pisaste um garfo de plástico, Foda-se, não digas Foda-se que a tua mãe pode ouvir-te; o homem das bolas vai parar junto daquela senhora que acena uma mão de pulseiras e anéis; e se ela compra todas as bolas? e se só há duas? os outros miúdos já começaram a vir nesta direcção, corre, mais rápido, ninguém te poderia apanhar agora, não estás cansado, és um pequeno animal, o oxigénio a alimentar os pulmões, o teu coração embatendo contra a parede de cada artéria, o coração no corpo todo.

Comprava duas bolas para mim, e as outras, que a minha mãe me encomendara. Comia a primeira no caminho de regresso ao chapéu. O pequeno animal balançando a presa na boca - ainda que me tivessem caído os incisivos de leite nesse verão. O meu irmão mais velho arrancava-me o saco dos dedos. A minha mãe levanta-se, dizia que a outra bola ficava para o lanche, e antes que pudesse alcançar o guardanapo para me limpar o bigode de açúcar, já eu estava a esfaquear as ondas, e a gritar para o meu irmão: "Viste esta? Viste esta?"

Talvez tenha sido por isso que, ao atravessar o cheiro da bolas de berlim esta manhã, comecei a correr, a correr até sentir que ainda tenho pernas, que a caixa torácica se enche como um balão de ar quente, que o coração ainda pode pulsar por todo o sistema sanguíneo. No final da corrida estava no correios. Comecei a rir. Sentia-me bem. E tu não estavas lá, mãe. Nem o chapéu de sol, nem a sombra onde lia livros da Mónica e do Cebolinha, nem a toalha com o Super Homem, nem a tua diligência de mãe a procurar o guardanapo, a agachares-te, ficando do meu tamanho, para me tirar a franja do olho esquerdo e me magoar um pouco (sei que não era de propósito) quando afastavas os grãozinhos de açúcar da minha pele. E ainda que não possa, não consiga - não sou como as mulheres - lembrar-me do teu cheiro, imagino agora que cheiravas a bolas de berlim. Não é verdade, é um truque que inventei, mas espero que trates a minha mentira de hoje com a mesma idulgência de mãe, com que cedias aos meus pedidos sem interrupções: "Mãeeeeeeeeeee. Posso comer a segunda bola antes do lanche?"

5 comentários:

gin disse...

já te disse que gosto muito de ti?

Marta disse...

Que lindo.

Pedro F. disse...

very nice indeed e já é o segundo texto teu que leio hoje!!!

Pedro disse...

lindíssimo

Unknown disse...

....como pode alguém escrever assim sobre bolas de berlim e carreirinhas e o resultado ser uma belíssima dedicatória de amor...