terça-feira, 25 de novembro de 2008

Les Belles Lettres


Sou muito mais prosador que poeta - em tempos julguei-me poeta (a adolescência hormonal dizia-me que precisava de cantar odes triunfais, de impressionar as miúdas, de me destacar dos rapazes com a camisa do cavalinho e o penteado redondo a la Luís Represas).Mas a minha estrutura mental não me permite exercícios monumentais de síntese, preciso de fôlego, preciso de falar e de contar histórias. A poesia, por sua vez, como a música, precisa de uma inspiração ancestral que não disponho. A poesia é um momento (a felicidade, já dizia Borges, é a soma desses momentos). A prosa é um desejo de continuidade, o percurso que começa quando Deus acendeu o candeeiro da humanidade e acaba no dia em que o planeta se apague. Gosto de ler poesia. Mas não sou capaz de escrevê-la. Este é o último poema que escrevi, a pedido da minha editora. É, julguei eu na altura, um poema de amor. Foi escrito há cinco anos. Nunca mais me pus a escrever na vertical. E pô-lo aqui (como se me apanhassem nu atrás da cortina do duche) é um exercício de expiação. Melhor: fecha-se uma porta, abre-se a vida inteira.

CASA

se algum dia por acaso
eu voltar a rasgar a tua latitude neste planeta
podes abocanhar-me
caçar-me com os incisivos balançar-me na boca

não aceites as minhas habituais desculpas
de nómada
nem
acredites quando te disser que tudo o que tenho
cabe dentro de uma mala

começa por esconder-me os sapatos

convence-me a destruir os mapas de viagem
e a engolir âncoras pedras
um endereço com número na porta

mesmo que o meu desassossego geográfico
estremeça a perna direita
debaixo da mesa e agite o metal dos talheres
não hesites
leva-me para tua casa

prova-me que não tenho de apanhar o último comboio da noite
que incendeia a costa e que me ajuda
a fugir todas as madrugadas

recebe-me nas zonas sem roupa
do teu corpo

manobra-me a língua
usa-me

quando a tua carne já não precisar de mim
amarra-me
cuida do meu sono temporário

obriga-me a dizer-te aquilo que os meus dentes
sem coração nunca autorizaram:

esta noite durmo contigo


.

8 comentários:

Pedro disse...

na prosa o eu "esconde-se" melhor?
eu diria que há que não pensar, e escrever, e se vier poesia, que venha

gostei, e pouca poesia me encanta, desta gostei

busycat disse...

Se por não gostar de escrever poesia sai isto nem imagino o que seria se gostasse... Eu gostei.

beijo
busycat

muito querida disse...

xiiiiii...gostei muito..
erótico qb, sentimental qb..

és assim em tudo? QB?

beijocas

Unknown disse...

eu acho que isto é prosa, da tua boa prosa, disfarçada de poema... é o que me parece...

Marta disse...

O mundo está tão confuso que já ninguém sabe o que é o quê. A literatura não fica de fora. Prosa disfarçada de poesia. Poesia disfarçada de prosa. No fundo, não interessa nada. Só interessa isto: é bonito.

Hugo Gonçalves disse...

a todos vosotros os digo: muchas gracias.

(como um menino corado diante da professora que lhe elogia a composição)

pipa disse...

eu também gostei...muito

Margarida disse...

muito bom. :)