terça-feira, 24 de março de 2009

Tenha medo, tenha muito medo


Nunca vi nada assim. Não é a primeira vez que escrevo isto, mas preciso de repetir: nunca vi nada assim. E mesmo que me digam que os gregos são mais mediaticamente futeboleiros que os portugueses (parece que têm 13 jornais desportivos), começo a ter dúvidas que haja um país que telenoveliza o futebol como nós, e uma comunicação social que alimente a besta como se fosse um implacável traficante de heroína. Sem escrúpulos. "É o que as pessoas querem ver", dizem os responsáveis pela comunicação social, com o mesmo encolher de ombros dos traficantes, como a mesma preguiça de quem só quer chegar a casa e calçar os chinelos e adormecer diante da intermitência faladora da tv.

Há um comentador, Rui Santos, na Sic Notícias, que, sozinho, fala mais de uma hora e meia no horário nobre de domingo. Há três programas cujo o formato é exactamente igual, cada um com três comentadores (oh originalidade!) nos três canais de notícias portugueses. Há fóruns e mais fóruns, onde a vox populi tenta superar a profissão de camionista ou professor de escola secundária para, nesses dois minutos de tempo de antena, sentir-se parte do painel oficial de comentadores.

Há presidentes de clubes, há o responsável de comunicação do Benfica, que discursa como se fosse um elemento da oposição a Fidel Castro. O Jornal da Noite da Sic, 24 horas após o final da Taça da Liga, abre (durante vários minutos) com a Taça da Liga (que tinha acontecido, repito, na noite anterior). O jornal Jogo chama "Ferrari" ao fiscal de linha, porque dizem que é do Benfica. Fazem-se ameaças de morte ao árbitro do jogo.

Quando o Vata marcou o golo ao Marselha, na semi-final da Taça dos Campeões Europeus, saltei de tal forma em cima da cama, a ouvir o relato, que o meu pai pensou que estivessem a assaltar a casa. Mas a verdade é que agora não consigo associar o meu gosto pelo futebol a esta pobreza massificada. Não percebo porque tudo isto é tão importante. E numa derradeira tentativa de perceber esta voracidade parola, em que o jornalismo se começa a parecer com as multidões que cospem e gritam e agridem nas portas dos tribunais, começo a imaginar-nos a nós, os portugueses, como a família na qual ninguém acabou a escolaridade obrigatória, e cujo o desinteresse pelo mundo é substituído pela dormência de seguir as novelas do futebol na televisão. É mais fácil viver neste estado de hipnose futebolística, através do outro - do dirigente indignado, do jogador birrento, do árbitro ameaçado -; é mais fácil não mexer o corpo desinteressado do sofá ou da cadeira do café e, no entanto, largar opiniões com a certeza e a pompa de um comentador televisivo.

Dizem que precisamos de escapes para a dureza e tristeza da vida real. E que tal fazer com que a vida real seja mais apetecível e mais alegre?

O que é mais estranho ainda: é que o nosso futebol nem é assim tão bom, os jogos são soporíferos, os jogadores mandriões, os dirigentes são tão incompetentes e maníacos do ego como são alguns autarcas e criminosos, os árbitros falham na curva com demasiada frequência. Somos um pouco napolitanos: convivemos com uma coisa feia e mafiosa, o futebol nacional, mas que faz parte de nós, como a Camorra faz parte da vida dos napolitanos.

Um estudo dado a conhecer hoje, informa que as crianças portuguesas passam a maior parte do seu tempo, diante da televisão, a ver novelas e futebol ou programas relacionados com futebol. Primeiro, porque esses são os programas que os pais escolhem ver. Segundo, porque essa é a programação que as televisões oferecem. Este é o nosso admirável mundo novo.

What a wonderful world of waste.

2 comentários:

Enrique Pinto-Coelho disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Patti disse...

Tal e qual. E já ontem, eu dizia a mesmíssima coisa.