domingo, 7 de dezembro de 2008

Em madrid também chove


Não tenho nenhum ritual para ler jornais. Não começo pela última página, muito menos me rebenta uma veia na cabeça caso alguém ponha as mãos na revista de domingo antes de mim. Não me importo de ler jornais amachucados nem suplementos da semana anterior. Sigo apenas a lógica convencional de começar pela primeira página, um lugar para as melhores histórias, embora se tenha tornado, tantas vezes, numa espécie de híbrido: uma mistura de produto de hipermercado em promoção com vouyeurismo de porteira no parapeito da janela.

Mas há ainda muitas boas histórias. Como aquelas que contam as crónicas de Ferreira Fernandes, no Diário de Notícias; ou as investigações de Christopher Hitchens na Vanity Fair; ou as narrativas desportivas de Santiago Segurola, que tem os olhos apurados de um atirador furtivo e a habilidade narrativa de um romancista policial. Por causa de Segurola, durante o Mundial de 2006, interrompi a lógica de começar um jornal pelo princípio. Todas as manhãs, durante o torneio, numa pastelaria madrilena onde as empregadas sul americanas atiravam croissants para o balcão como se dessem chapadas nos clientes, precipitei-me para a página de Santiago Segurola, e ficava a gostar mais de futebol e de jornalismo.

Tal como aconteceu com Segurola, descobri Enric González nas páginas do El País, um dos melhores jornais que conheço - o El País abre com a secção de internacional, assumiu-se há dois anos como um periódico global, tem correspondentes em todo o lado, conta histórias, não é apenas um espelho passivo do nosso tempo, e procura comprendê-lo e ser tão arriscado como ele. Quando cheguei a Madrid, Enric González tinha deixado de ser o correspondente em Nova Iorque, mudando-se para Roma. Comecei a ler os seus textos sobre Itália, e a suas crónicas sobre a Liga Italiana de Futebol, nas quais explicava esse país melhor do que explicam os relatórios da CIA.

Numa tarde em que a chuva de Madrid se pegava ao rosto como película aderente de cozinha, fui-me proteger na atmosfera de alcatifa e aquecimento central da Fnac. Entre os outros náufragos de domingo, que se sentavam no chão, tirando cachecóis e casacos, abrindo livros e enfiando auscultadores na orelhas, pus-me a descobrir o Enric González que escrevera sobre Nova Iorque. Li de uma vez esse seu livro, cuja simplicidade do título mostra que o autor é um assertivo redactor da realidade, e um jornalista que percebe que as histórias ajudam a organizar (e a perceber) a tendência fragmentária da vida. No final dessa tarde de má memória meteorológica, acabei de ler 'Histórias de Nueva York'.

Tudo aquilo que eu penso de Enric González acabou por ser ele a dizê-lo este domingo. Em 'El problema de la realidad', fala de como é importante continuar a escrever histórias sobre a vida real, e a chamar-lhes, se assim quisermos, jornalismo.

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