domingo, 21 de dezembro de 2008

Um Natal Americano


(Texto publicado no Semanário Económico de 20 de Dezembro)

Um dos melhores e mais clarividentes momentos natalícios aconteceu-me nos Estados Unidos, no Dia de Acção de Graças. Mas antes disso: Linda tinha 15 anos, era americana, vivia no Portugal pós 25 de Abril, e apaixonou-se por um profissional do toureio a cavalo. Nas fotos que ela me mostrou, ele era um adulto amigo dos seus pais, moreno na pose, impecável no traje, com um ofício de risco, enfim, a escolha perfeita para a imaginação romântica de uma adolescente num país estrangeiro. Conheci Linda quando ela tinha 40 anos, em Nova Iorque, uma semana antes do Dia de Acção de Graças, através da sua sobrinha. Ela esperava encontrar alguém que compreendesse a sua história: 25 anos após a sua vida em Portugal, tinha regressado a Lisboa de férias, e acabou por concretizar essa fantasia de amor toureiro. No bar em que a conheci, Linda contou ainda que iria separar-se do marido com quem tinha três filhos. Depois dos primeiros copos, e de mostrar como tinha os abdominais definidos, levantando a camisa e dizendo “Toca-lhes”, convidou-me para passar o Dia de Acção de Graças em sua casa. Comecei então a perceber porque razão as festas familiares costumam produzir excelente dramaturgia, entretenimento e lições de vida – seja Os Maias ou os Sopranos.

Linda morava em Long Island, num bairro de casas sem muros, carrinhas familiares e muito sentido de comunidade. O almoço tinha a participação da família de Linda – marido, três filhos, a sobrinha, e a mãe de Linda. O marido tentou encontrar-me um jogo de futebol europeu nos canais de desporto. Esforcei-me para lançar uma bola de beisebol para as luvas dos filhos tão loiros e penteados como a artificial harmonia familiar. Tive de fumar no pátio das traseiras. Mostraram-me a casa forrada a fotografias da família tiradas em estúdio. Tinham um ginásio na cave. Comi, sozinho, metade de uma tarte de abóbora. Bebi mais de metade de uma garrafa de vinho. Na cozinha, Linda queixou-se do marido – “É um alcoólico” – e falou-me do toureiro. O almoço começou com a tensão calada de um duelo. Depois, Linda encontrou motivos para castigar verbalmente o marido, fosse por causa de uma opinião política, fosse por causa do tempo que demorava a passar-lhe o puré de batata. Tratou-se de uma tarde de comédia, cheia de lugares comuns, momentos de vergonha alheia, e espírito natalício – havia uma família em colapso, lareira, perú e neve lá fora.

Nos Estados Unidos, civilização produtora do Natal contemporâneo, a temporada das festas começa no Dia de Acção de Graças, na última quinta-feira de Novembro. Este ano a época festiva estreou-se com algumas vítimas do Black Day, dia de saldos que se segue ao Dia de Acção de Graças: três clientes morreram esmagados pela excitação comercial da multidão.

Segundo a Mind, uma associação para os cuidados mentais, um em cada cinco americanos sofre de stress durante a temporada festiva. As linhas telefónicas de ajuda, como a Samaritans, registam um aumento de dez por cento nas chamadas. Nas palavras da porta-voz da Mind: “Muitas pessoas têm dificuldade em lidar com as exigências do Natal. Descobrimos que o stress causado pelo Natal é tão comum como aquele provocado por problemas de relações amorosas e familiares.” Nos Estados Unidos ou em Portugal, as famílias têm as mesmas disfunções, há a mesma frustração furiosa enquanto esperamos na fila para embrulhar um Nodi, as mesmas ressacas em forma de buraco negro após os jantares da empresa, a mesma pressão para celebrarmos alguma coisa que se imita a si mesma todos os anos. Somos os ratinhos a andar dentro da roda. Não vamos a nenhum lado que já não conhecêssemos.

Como explica a porta-voz da Samaritans: “O Natal enfatiza quão infelizes andam as pessoas, o facto de que podem não ter um companheiro ou muitos amigos, enquanto que todas as outras pessoas parecem estar a divertir-se”. Ou seja, apesar da boa vontade divina das figurinhas do presépio, a quadra natalícia, esse momento anual para a paz e para o balanço das actividades, pode ter dolorosos efeitos secundários: porque sentimos a mesma obrigação que sente uma criança a quem forçam as aulas de catequese e a brancura da primeira comunhão. Para suportar essa escravatura sazonal, optamos pela auto-indulgência: comemos mais, bebemos mais, vimos mais televisão. Conheço primos que fumam charros antes da consoada. Conheço gente que sobrevoa o Natal a vapores de whisky.

Nos programas televisivos da manhã, nas revistas, nos programas televisivos da tarde, oferecem-nos conselhos para enfrentar o Natal, uma forma de lidar com o sistema a partir do sistema: compre os presentes antes de abrir a temporada de caça nos centros comerciais, faça exercícios relaxantes de respiração, controle o álcool e os cigarros. Não chega.

Quando o escritor norte-americano Tom Wolfe disse, “A realidade é um bom sítio para se visitar, mas eu não viveria lá”, estava seguramente a referir-se ao período do Natal e ao espectáculo tragicómico, no Dia de Acção de Graças, em casa de Linda. Só alguns anos mais tarde percebi porque me divertira tanto com uma intriga familiar em Long Island: aquela não era a minha festa, nem a minha família, nem as minhas memórias – aquela era a realidade que, tal como Tom Wolfe afirmou, eu podia visitar sem ter de montar acampamento. Linda, Long Island, tarte de abóbora: tudo era uma novidade alegre. O ratinho tinha saído da roda.

Com a excepção de um Natal, em reportagem, passado num campo de desalojados na América do Sul (outra vez o ratinho a sair da roda), passei todas as consoadas com a minha família, e com o alegado stress de desempenhar um papel esperado (tão esperado como o bacalhau) e de cumprir com as obrigações natalícias. Percebo agora muito melhor a família de uma ex-namorada – os pais trabalhavam na TAP – que viajava para outra latitude no planeta antes do dia 24 de Dezembro. Percebo agora a alegria tranquila da escritora Patrícia Reis que, no ano passado, pegou no marido e nos filhos e passou as festividades de Inverno no Brasil. Este ano, quando já tinha decidido não fazer compras de Natal, entrei num centro comercial e, como fizera no jantar de Linda, pus-me na posição de espectador dos ratinhos compradores e da sua agitação hooligan. Confirma-se: sem obrigação há muito mais prazer.

Linda não ficou com o toureiro. Nem com o marido. Mas fez uma operação de implantes de silicone e deixou de ser dona de casa para se tornar em gerente de um restaurante. Linda: a celebração norte-americana do indíviduo, a materialização da Declaração de Independência – “(Todos os homens e mulheres têm) determinados direitos inalianáveis, entre eles a Vida, a Liberdade, e a procura da Felicidade” – além do divórcio e da cirurgia plástica.

Neste período obamístico de mudança de hábitos em que suspeitamos ter, de facto, o direito a ser felizes, o Natal tradicional deveria tornar-se bissexto. De quatro em quatro anos o ratinho poria o barrete e regressaria aos prazeres seguros da tradição (as conversas sobre a inutilidade das frutas critalizadas, o Sozinho em Casa na televisão, os beijos das familiares idosas como estalinhos de Carnaval). Contudo, nos restantes anos, e a conselho de Tom Wolfe, visitaríamos outra realidade a fim de criar um Natal com as qualidades temporárias da ficção – na casa de Linda, num karaoke de Tóquio, numa pensão de backpackers no Sri Lanka, numa cabana no Gerês, numa missão em Moçambique, na cama com a namorada ou a amante, na certeza que, em vez de esperarmos o resgate de um toureiro na reforma, o natal é como uma pessoa quiser e não quando uma pessoa quiser.


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1 comentário:

Babe disse...

Adoro dar presentes e normalmente dou tantos que deixo os outros embaraçados.
O Natal é por isso The Season em que posso pôr as garras de fora e agraciar o mundo com a minha presentomania.

Porém, este ano transbordo de neura e solidão e não me apetece muito dar(-me nos) presentes. Por isso, ontem, quando saí para a nunca-antes-sentida obrigação das prendas de Natal, comecei plas pessoas a quem queria mesmo dar presentes. As pessoas que não iam receber prenda porque-tem-de-ser:

- o meu tio, melómano particular, com gostos pop-folk-rock preferencialmente a roçar os anos 60/70: o "Déjà Vu", dos Crosby, Stills, Nash & Young.
- a minha irmã... Gastei o resto do orçamento que tinha. Dei-lhe a prenda que queria dar-lhe: a Marta adora répteis, a Marta adora jóias (eu gosto de insectos). Estava na Baixa. Entrei na Ourivesaria Aliança e comprei-lhe uma pregadeira - agora já não se pode dizer broche, que parece mal... - em forma de serpente. É lindo e ela vai amar e eu enchi-me de prazer.

Depois desisti. Entrei na Bertrand e comprei-me, e não por ser Natal, o último romance do João Tordo.

O resto do mundo que se foda, este ano só há Natal suficiente em mim para duas pessoas!

PS - Se precisa fosse uma prova de que a Marta merece isto e de porque é que me apetece sempre dar-lhe prendas... hoje telefonou-me de manhã. No meio do caos do emigrante-em-visita-natalícia, fez-me as compras que (mal sonha ela) o meu orçamento e paciência não podem comportar.