quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
Uma natureza viva de Lisboa ou O meu dia de trabalho
Na Cova da Moura eles olhavam para nós: éramos demasiado brancos na cara e nas roupas, muito mais brancos que os polícias que lhes arrancam a carapinha com alicates nos interrogatórios. Brancos que, por mais mundo corrido e noites de bandidagem, têm sempre a fisionomia dos alunos das escolas privadas. Eles olhavam e acenavam a cabeça, como se dissessem 'tá-se bem ao anfitrião que nos abria caminho. Na entrada dos cafés grupos de rapazes e raparigas falavam crioulo, fatos de treino J.Lo, chapéus 50 Cent, a tarde passada de mãos no telemóvel. Ruas estreitas. Caminhar por ali é como montar um cubo de Rubik. Num beco jazia um carro deficiente, comido até ao pára-brisas. Os telheiros de zinco reflectiram uma fresta de sol quando, por um momento, se interrompeu o dia de chuva. Centenas de antenas parabólicas, em posições improváveis, eram como insectos a escavar as paredes das casas e barracas. Uma praga de gafanhotos hertezianos. O maravilhoso primeiro mundo do entretenimento.
Mr. J levou-nos por ruas com o desacerto geométrico das favelas, paredes de tijolo como legos mal montados, escadas e contra-escadas, uma passagem, viadutos miniatura, mais uma porta de alumínio, o cabeleireiro africano com o rádio a tocar por entre os secadores, e por fim a sala dos mártires da Buraca. Em todas as paredes havia fotos dos que morreram com balas - da polícia, de inimigos de outros bairros, e as que saíram de pistolas nunca identificadas. A pouca luz que entrava pela janela tinha de cruzar o tecido das bandeiras com Bob Marley e Peter Tosh. Então, Mr. J mandou comprar duas litronas de cerveja. E depois falámos.
Na despedida, desci primeiro as escadas. Os outros ainda ficaram lá em cima um momento mais. E eu espreitei para os pátios, e portões, e corredores: ao fundo estava a rua principal. O horizonte, ainda mais ao fundo, eram os prédios mal coloridos de um bairro de empregadas de limpeza e de contínuos de escola secundária. Na rua principal passavam pessoas. Nenhum branco. Pensei como se fugiria dali em caso de rusga policial, se não fosse branco e se tivesse motivos por que fugir: daquele muro saltaria para aquele telhado, escalava para a varanda, desviava-me da chaminé, e desaparecia atrás daquela casa oblíqua. No mundo real, uma voz de mulher cantava. Ela estava num pátio, com cabelos brancos a começarem nas têmporas até serem impedidos pela negritude da carapinha. Varria o chão e cantava em crioulo. Ela, como eu, estava a fantasiar. Talvez com o filho emigrado em Boston, que por fim vai receber o green card; com o neto que começou a passar branca no Campo Grande; com a irmã que lhe pintou as unhas das mãos, pela primeira vez, num fim de tarde em São Vicente.
Descobriu-me a espreitar como se apanhasse um susto. Eu disse-lhe boa tarde, ela sorriu, meteu a mão no peito, depois na vassoura, disse boa tarde, e regressou ao trabalho doméstico com banda sonora. Eu fui-me embora. Ela ficou.
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