terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Love Story


Hoje lembrei-me de Daniel Pearl, sobre quem já escrevi dois artigos. Por me ter lembrado dele, deixo aqui um desses textos.



Desde que Daniel Pearl entrou numa festa, em Paris, e encontrou Mariane, que a história de ambos ganhou qualidades cinematográficas. Primeiro por causa do amor – um percurso de sedução cheio de detalhes originais – e, quatro anos mais tarde, por causa da política internacional ou, de forma mais simples, por causa da maldade dos homens: um grupo de terroristas islâmicos que interrompeu a ordem natural do amor.
O apartamento da festa onde se conheceram em 1998 tinha janelas para o Palácio do Eliseu. Daniel levava um fato escuro, clássico. Rodeado de pessoas, apreciava mais a forma como Mariane dançava com a mãe, do que a conversa dos seus interlocutores. Sobre esse exercício de observação, Mariane escreveu anos mais tarde: “O seu corpo inclinava-se um pouco para a frente, como se quisesse oferecer-nos alguma coisa, ou talvez apanhar algo que fosse nosso”.

Depois de apresentados – “São os dois jornalistas, deviam conhecer-se” –, encostaram-se a uma parede. Daniel, correspondente do Wall Street Journal (WSJ) para o Médio Oriente, falou sobre as suas reportagens no Irão. Mariane, jornalista da rádio pública francesa, contou-lhe sobre o seu programa dedicado aos imigrantes. Ele sugeriu-lhe uma visita ao Irão, disse que a ajudaria. O entusiasmo do primeiro encontro foi controlado pela moderação de dois adultos profissionais. Mas também porque, no final da festa, Mariane percebeu que Daniel não estava sozinho. Uma alemã loira, designer de roupa interior, pegou no braço do jornalista americano como se delimitasse a sua propriedade.

Duas semanas depois, Mariane recebeu alguns artigos, escritos por Daniel, sobre os imigrantes que trabalham na Arábia Saudita. E pouco tempo depois, o jornalista usou o intervalo entre dois voos, em Paris, para sair do aeroporto e oferecer-lhe um livro – Shah of Shah’s –, sobre as razões da revolução islâmica no Irão. Disse-lhe ainda que pensava alugar uma casa em Teerão. Daniel tanto usava fatos escuros com finas riscas brancas, como se movia num país, o Irão, onde as gravatas tinham sido proíbidas por representaram o imperialismo ocidental. E substituia os convencionais truques de sedução – talvez um jantar, uma sessão de cinema – por livros entregues no tempo que demora uma escala num aeroporto.

No seu livro, A Mighty Heart, (Um coração Poderoso) Mariane escreveu sobre esse encontro: “Pensei, este tipo é maluco, o que é uma pena porque gosto dele (...) Tínhamos alguma coisa em comum. O que era eu ainda não conseguia ver. Mas era forte”.
Mariane regressou de uma viagem a Cuba – tinha um pai holandês e uma mãe cubana –, com histórias para contar. Dirigiu uma carta a Daniel. Escreveu sobre como, em Havana, a confundiam com uma prostituta por ter feições cubanas mas estar acompanhada por estrangeiros, da capacidade dos cubanos para o prazer numa ilha pobre onde o regime é mais importante que as pessoas. No final da carta, disse que gostava de vê-lo outra vez.

Meses depois, Daniel telefonou com a agitação de quem tem de explicar um atraso: a carta de Mariane tinha ficado escondida entre o correio que nunca se lê, as contas, a publicidade. E ele apenas a descobrira ao regressar das suas viagens. Perguntou-lhe quando se poderiam encontrar, mas as agendas de ambos não estavam em sintonia. Um dia, Daniel ligou de Madrid, apanharia o comboio para Paris, chegaria de madrugada para preparar o pequeno-almoço de Mariane.

Desta vez não havia fato escuro. Daniel, o viajante, apareceu às oito da manhã. Tinha um saco de compras, uma mala, a caixa de um bandolim e uma t-shirt que dizia Freddy’s Pizza. Fez ovos e espremeu as laranjas espanholas, vermelhas por dentro. De noite, preparam-lhe uma cama na sala. Ele apareceu com um pijama de riscas. Mariane riu e observou a preserverança de Daniel que tentava encaixar o lençol no sofá cama – “De repente percebi o que me atraía tanto nele: Danny dava tudo o que tinha em tudo o que fazia”. No contrato de casamento, escreveram: “Prometemos descobrir, juntos, novas coisas, lugares, pessoas, e ver a nossa vida como uma obra de literatura.”

O WSJ propôs a Daniel o cargo de chefe da delegação para o Sul da Ásia, com sede na Índia. O casal mudou-se para Bombaim, e quando os aviões americanos começaram a bombardear o Afeganistão, após os atentados de 11 de Setembro, Daniel cobriu a guerra a partir da fronteira com o Paquistão. Regressaria em Dezembro para seguir uma pista sobre a passagem de segredos nucleares paquistaneses para os taliban. Desde que se casaram, que Mariane e Daniel tinham acordado que estariam sempre juntos em reportagem. Ela chegou a Karachi no último dia do ano de 2001, grávida de seis meses. Daniel esperava-a no aeroporto. Ficaram hospedados em casa de Asra Nomani, uma amiga jornalista.

No dia 23 de Janeiro acordaram na mesma cama. Fazia muito calor, Mariane está grávida e constipada, mas Daniel recordou-lhe que a reportagem acabaria nessa tarde, e que no dia seguinte estariam de férias numa praia do Dubai.

Daniel era um jornalista prudente que não acreditava em heroísmos desnecessários. Chegou a escrever um manual de segurança para os seus colegas em situação de guerra. A sua mãe, judia, nasceu no Iraque. Ele aprendeu árabe em Londres. Viajava sempre com o seu violino e bandolim, misturava-se com as pessoas dos países que visitava, tocava com músicos desconhecidos. Daniel adorava o tamanho e as diferenças do mundo. Quando chegava a uma cidade nova, tinha o hábito de entrar numa barbearia tradicional e cortar o cabelo. Recusava ver os conflitos, sobre os quais escrevia, a preto e branco, os maus e os bons. Sobre o problema entre Israel e Palestina, reconhecia que ambos os lados tinham razão, e que ambos os lados cometiam crimes. Escreveu artigos sobre zonas que não costumam ser notícia, sítios miseráveis, mostrava que há mais pessoas e problemas que aqueles que abrem os notíciários Escreveu: “O papel do jornalista não é atribuir prémios de virtude, mas apurar os factos. Ponto final.”

Mas, nos olhos a preto e branco de muitos, Daniel era um jornalista americano, judeu, que vivia na Índia – país que mantém um conflito com o Paquistão desde 1947 por causa de Caxemira – e que tentava investigar uma história com terroristas no Paquistão. Nessa manhã, ele encontrou-se com um alegado discípulo de Giliani, o líder de um grupo radical, e desapareceu.

Daniel e Mariane tinham uma regra – sempre que um deles ia a uma entrevista, o outro deveria ligar a cada hora e meia. Nessa tarde, Daniel não respondeu. Ela ajudou Asra a preparar um jantar para personalidades de Karachi e ligou para o WSJ, para um antigo agente dos serviços secretos paquistaneses (ISI), para os sogros. Jantou, inquieta, e em seguida começou a procurar pistas no computador de Daniel. Encontrou os emails de Bashir, o homem que tinha arranjado a entrevista. Nos dias seguintes, a casa de Asra recebeu agentes do FBI, da polícia paquistanesa, um editor do WSJ. O capitão da polícia local era um homem inteligente, que nunca desistia. Mas não tinha meios. Foi Mariane que lhe arranjou uma impressora e lanternas.

No dia 26 de Janeiro, dezenas de jornais receberam quatro fotografias de Daniel, acorrentado e com uma pistola na cabeça. O texto exigia a libertação dos presos islâmicos em Guantanamo. Nos dias seguintes, um jornal paquistanês publicou, na primeira página, uma foto de Daniel. Mariane pediu para traduzirem o texto: acusavam-mo de ser agente secreto de israelitas e indianos.

Durante cinco semanas, Mariane não desistiu. Deu entrevistas à CNN rogando que soltassem o seu marido (sempre aconselhada pela polícia paquistanesa e o WSJ), conseguiu que muçulmanos influentes pedissem a libertação de Daniel, visitou o ministro do interior paquistanês, que lhe disse: “O que é que o seu marido andava a fazer? Que necessidade tinha de encontrar-se com aquelas pessoas? Isto não é assunto para jornalistas.”

Os polícias paquistaneses fizeram algumas detenções, descobriram de onde foram enviados os emails. A casa onde estava Mariane assemelhava-se a um quartel-general, ela ajudava nas investigações, pressionava políticos. Estavam cada vez mais perto. Mas no dia 21 um de Fevereiro, o capitão entrou em casa de Asra acompanhado do editor do WSJ. Disse: “Desculpe Mariane, não consegui trazer o seu Danny para casa”. Ela gritou: “Deixem-me sozinha”, e entrou no quarto, fechou a porta, gritou mais. Mas depois regressou, recusando a morte de Daniel. Disseram-lhe que era verdade, que havia um vídeo, e ela respondeu que trabalhara em televisão, que sabia como se fabricavam imagens. Garantiram-lhe que não havia dúvidas. Ela insistiu, quis saber porquê. “Daniel foi decapitado”.

Mariane nunca quis ver o vídeo. Nele, o marido, com um fato de treino, tem a cara inchada, o cabelo sujo, é um homem triste mas que ainda não foi vencido. Obrigam-no a dizer: “O meu pai é judeu, a minha mãe é judia, eu sou judeu”, como se ter nascido fosse por si só um crime. Depois a faca, a decapitação. Foi esquartejado e enterrado debaixo de uma árvore. O mentor do rapto, um paquistanês criado em Londres, com um curso na prestigiada London School of Economics, foi condenado à morte. Mais de 20 pessoas estiveram envolvidas no crime, mas apenas três foram julgadas. Mariane acredita que o marido foi assassinado por ser americano, judeu e jornalista. Para os seus raptores, a morte de Daniel Pearl deveria servir de exemplo.

Semanas antes de morrer, ele escolhera o nome do filho. Adam Pearl nasceu em Paris. No mesmo dia, Mariane recebeu telefonemas de George W. Bush e Jacques Chirac. Numa entrevista, disse: “Primeiro as pessoas querem fazer de nós santos. É simpático e aprecio isso, mas santos? Não ainda não, as coisas são diferentes agora”. Os pais de Daniel criaram uma fundação com o seu nome para promover a música. Mariane continua a ser jornalista e vive com o filho, de quatro anos, em Nova Iorque. Daniel era um idealista, acreditava no amor e nos seus intérpretes, acreditava que os homens podiam ser melhores. Desde a sua morte, a política internacional continuou a funcionar, a maldade dos homens também. Pouco mudou, a não ser, claro, a vida de todos aqueles que, como Mariane, viram o seu caminho rasgado. Há uma lista, com 16 entradas, redigida por Daniel Pearl, com o título “Coisas que amo da Mariane”, e que, segundo ele, deveria crescer até ao fim da vida: “Senta-se no meu colo quando estou a trabalhar. Caminha com pequenos passos. Acredita que não temos de abdicar de certas coisas quando formos velhos. Dança com ou sem música”.

4 comentários:

Pulha Garcia disse...

Das coisas mais humanamente bonitas e interessantes que tenho lido na blogosfera.

Pulha Garcia disse...

Postei este texto no meu blog, com a devida vénia. Se porventura preferir que o retire, basta passar pelo meu estaminé.

Hugo Gonçalves disse...

No problem

Pedro disse...

apetece dizer porra com mais letras feias do que porra

obrigado por essa partilha