segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Sobre bigodes e beijos na boca


Em retrospectiva penso se aquela primeira vez que peguei nas lâminas de barbear, na casa de banho dos meus avós, e estiquei o lábio de cima como um camelo diante de um balde de água, a fim de avaliar os quase invisíveis pêlos do meu bigode, terá sido uma simples curiosidade infantil, um desejo de imitar o poder dos machos alfa da família (os meus tios e o meu avô gritavam como chimpanzés napolitanos) ou de copiar o meu ídolo do verão de 1984.

Os adultos impunham o recolher obrigatório da sesta após o almoço. Diziam-nos, com tom de professor de religião e moral, que as crianças tinham de dormir porque era assim e mais nada, quando no fundo apenas queriam silêncio para digerir a sua própria sonolência e a melancia do almoço em quartos onde rodavam ventoinhas.

E esse era o momento para as minhas aventuras: ouvir, com auscultadores nas orelhas, os discos de heavy metal do meu tio mais novo, subir até ao terraço sem fazer tilintar os tubinhos metálicos pendurados na porta, esperar que a Cristina (mais velha quatro anos) me viesse beijar com língua na parte mais escura das escadas, onde os degraus de mármore me arrefeciam as virilhas, e as palmas das mãos se imobilizavam ao lado das pernas. Faz o que quiseres de mim, Cristina. Eu sabia que era apenas o teu campo de treinos; o que ensaiavas comigo ias depois mostrar aos rapazes da tua idade (o meu irmão, por exemplo).

Mas a minha tábua de mandamentos, aos sete anos, não me permitia fazer juízos sobre ti (hoje ainda menos), embora não me falasses quando estávamos perto dos rapazes que querias de facto beijar, e mesmo que eu convivesse diariamente com a minha avó, que classificava todas as namoradas dos meus tios como 'vadias', e que gostava de rezar um pai nosso comigo antes de ir para a cama. Tu, Cristina, não tinhas maldade, nem doenças venéreas, nem poderias ser excomungada pelo Nosso Senhor em pessoa. Tu eras o bem, eras o sacramento da hora da sesta, eras os beijos na boca, eras a minha respiração acertando passo com a tua, primeiro ansiosa, depois húmida e em desaceleração; e quando ias embora, após ensaiares comigo movimentos de língua e maneiras de evitar o choque de narizes, eu também sentia a pele húmida e o batimento cardíaco a perder velocidade, como se fosse um animal no fim da fuga que lhe acabou de salvar a vida.

Não tinha ciúmes. Sentia-me grato por, em segredo, usares a minha disponibilidade. Estávamos ambos a fazer o bem. Mas depois deixaste de aparecer nas escadas, e começou o Europeu de 1984 e, além disso, a tua família revelou-se demasiado vanguardista, mesmo para o meu liberalismo infantil. Soube que tu e o teu irmão tinham o hábito de mostrar pipis e pilinhas um ao outro. E numa tarde em que ia brincar com o teu irmão, ele apareceu-me nu, dizendo que estava com outro amigo, também nu, a fazer ginástica no quarto. Lembro-me de ter querido dizer 'Mas que merda é esta, não me digas que andaste a tomar os comprimidos do teu pai? Já ninguém se limita a andar de bicicleta?', embora o meu vocabulário de aluno de segunda classe não me permitisse mais que: 'Não, vou antes para casa ver desenhos animados.'

Cristina começou então a namorar com um miúdo que já usava gel e ajudava os pais na papelaria da família. O irmão de Cristina não escolheu a homossexualidade - quer dizer, pelo menos oficialmente, porque sei que se casou muitos anos mais tarde.

Nesse verão, rapei o meu bigode pela primeira vez, o que espantou toda a família e levou o meu irmão a sentencear, 'És mesmo totó, puto, agora vai crescer com mais força. Vais parecer o Chalana', sem saber que esse era o meu objectivo: quando Cristina deixou de precisar de um cúmplice durante a hora da sesta, eu agarrei-me ao futebol como se me agarrasse ao bar. Nesse verão do Europeu de 84, queria ter os caracóis do Fernando Chalana, queria a sua ferocidade de enguia a escorregar por entre os defesas, queria aquele desprendimento com que parecia jogar, sem se importar com mais nada; eu queria que a Cristina me visse no terraço, a rematar contra o muro, e pensasse que eu também não me importava com nada; queria vento, um pôr do sol, música de rádio, e cabelo comprido levantado pela minha velocidade no terreno de jogo; queria a bola sempre colada no pé esquerdo, como Chalana (embora eu fosse destro); queria que não fosses capaz de ignorar a excelência das minhas habilidades.


Não era amor, Cristina, era despeito infantil com prazo de validade. Com 8 anos, apenas queria que, diante do meu bigode e da minha destreza de Fernando Chalana, percebesses o que perderias no que restava daquele verão. Juro que não te culpo de, ainda hoje, quase poder acender um fósforo na minha barba de adulto. Não te culpo de nada. E quando recapitulo a forma como me encostavas à parede, me dizias para ficar quieto, e me comandavas com a tua boca, percebo que me estavas a dizer que é muito melhor o pecado original do que a segurança aborrecida do caminho dos céus.


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7 comentários:

Marta disse...

Tal como tu, também eu estava a nascer no Verão de 1984. Mas eu ainda não sabia nada de pecados originais nem de caminhos do bem nem de beijos com língua nem de barbas de homens. 30 de Julho. Saí de dentro da minha mãe às 9 da manhã. Ainda hoje ando a descobrir se valeu a pena. Mas o sorriso que me puseste na cara com a história de Cristinas e vãos de escadas, faz-me pensar que sim.

Joao Tordo disse...

"Vais parecer o Chalana"...muito bom...

Provocador disse...

Isto é material do bom... E no meio de tanta história, não ficou nada recalcado para aí, Hugo? Nem um complexozito de Édipo? Nada assim na ordem do que é freudiano? Nada? Nem um comentário do Dr. Phil? Bolas!

Marta disse...

Bolas, tenho ali uma vírgula a mais. Louro, tu és bom nisto. Consegues descobrir? ;)

Provocador disse...

Claro, Clara. "Mas o sorriso que me puseste na cara com a história de Cristinas e vãos de escadas, faz-me pensar que sim." . Nunca, em tempo algum, se separa o sujeito do predicado com uma vírgula! ;)

Marta disse...

És o maior :D

pipa disse...

:) que saudades. Será que é possível manter-se parte dessa inocência..? ou só na memória..