sábado, 3 de janeiro de 2009

O Elogio da Crise


(Texto publicado no número 4 do Jornal do Lux)

Portugal queixa-se da crise, mas esta pode ser a nossa oportunidade para sairmos do comodismo do sofá. Já passámos demasiados anos embalados no conforto dos carros, dos telemóveis e do deixa andar. Não queremos desperdiçar mais oportunidades. Com a crise surge a metamorfose.

Por Hugo Gonçalves

Esta história começa nos Estados Unidos e acaba em Portugal. E mesmo que não pareça, ainda pode ter um final feliz. Depende de nós.

Tragédia número 1: o comediante norte-americano Grouxo Marx ficou sem 240 mil dólares (“Podia ter perdido mais, mas era todo o dinheiro que tinha”, disse Grouxo) quando a bolsa de Wall Street se desmoronou em 1929. Um dos seus amigos, Max Gordon, assessor financeiro, ligou-lhe. Gordon disse então as suas últimas palavras e deu um tiro na cabeça.

Tragédia número 2: setenta anos mais tarde, em Dezembro de 1999, eu estava na Venezuela para escrever sobre as inundações e derrocadas que mataram mais de 15 mil pessoas: as chuvas tinham destroçado os morros onde antes se equilibravam milhares de barracas; rios de lama empurraram carros, pessoas e casas até ao mar, despedaçando tudo contra os hóteis de luxo e as mansões de praia da alta burguesia de Caracas. No país que acabara de eleger o comandante socialista Chávez, esta era uma estranha forma da Natureza explicar a luta de classes. Eu, jornalista em fim de estágio, que ainda usava sapatos de vela, comprei o bloco de apontamentos que mais me aproximasse do jornalismo dos filmes Terra Sangrenta e Os Homens do Presidente. Tinha boas intenções. Mas no final dessa semana de reportagem, percebi que, por mais empenho literário que tivesse, haveria coisas que nunca conseguiria contar com suficiente precisão emocional. Tinha apenas de vivê-las: como a irremovível presença do cheiro dos mortos espalhados pela praia, misturados com o lixo, um cheiro dolorosamente doce que se instalava no céu da boca e subsistia mesmo depois de lavarmos os dentes.

Numa estrada de terra onde as pessoas caminhavam em busca de um campo de “damnificados” – assim lhes chamavam os jornais venezuelanos –, quis fazer perguntas a um homem que transportava um frigorífico. Tinha perdido a mulher e os filhos, soterrados dentro de casa. Sobrara-lhe aquele electrodoméstico que acabara de pousar na lama. No final, estendeu-me a mão e, como se fosse eu que precisasse de estímulo, despediu-se: “Buena suerte amigo, siempre p’alante.” E adiante foi, com o frigorífico às costas.

No seu discurso de vitória, o optimista pragmático Barack Obama avisou que as coisas não iam andar bem no futuro: “Duas guerras, um planeta em perigo, a pior crise financeira num século”. O mundo encolhe-se, tosse, sofre dores, tem demasiado medo. Pode vir aí uma depressão tão decisiva e prolongada como será, por ventura, o aquecimento global caso fiquemos quietos. Portugal também se lamenta. Parece um paciente depressivo que nem consegue tomar a medicação. E eu pondero se esta crise não será antes a nossa oportunidade. Pergunto-me: continuamos na vida em loop ou abrimos a pestana?

Nós, os que nascemos depois do 25 de Abril, nunca tivemos uma causa geracional, metemos nojo aos colunistas que lutaram pela liberdade, somos os doutores e engenheiros que queriam que fôssemos; somos os primeiros filhos da classe média, somos os irmãos anónimos de Tyler Durden, de Clube de Combate. Temos a sua desilusão precoce, embora nos falte o inconformismo incendiário, porque temos sempre a desculpa de que há alguma coisa melhor a passar na televisão. Senhoras e senhores, Tyler Durden: “Na História, somos o filho do meio; não temos um propósito, um lugar, não temos nenhuma grande guerra, nenhuma grande depressão; a nossa grande guerra é espiritual; a nossa depressão são as nossas vidas.”

Nós, os filhos da pós revolução, crescemos com televisões a cores, com jogos de computador, com os vídeoclips da MTV a açucarar-nos a vida. Nunca estamos sozinhos – os telemóveis, as sms, o messenger, o facebook. Recebemos o conforto que faltou aos nossos pais. Trabalhamos num escritório com ar condicionado e wi-fi, numa rua com dezenas de multibancos. Estamos sempre na vanguarda da superfície das coisas – o mp3, o plasma para a sala, a assinatura da Sport TV. Podemos viajar, ler jornais estrangeiros na internet, encomendar livros de Inglaterra, comer massas tailandesas. Queremos ser intérpretes do aforismo moderno: pensa globalmente, actua localmente. Mas as nossas maiores emoções colectivas são partilhadas diante de um jogo da selecção nacional. As nossas maiores emoções pessoais precisam de ser intensificadas com desportos radicais, com o consumo de drogas, com o sexo a abrir, com a esperança de um amor que não resulte no modelo de família protagonizado pelos nossos pais. E, no entanto, tantas vezes os copiamos.

Habituámo-nos a que personagens como Valentim Loureiro ou Alberto João Jardim fossem tidas como figuras cómicas em vez de desastres para a nação. Cruzámos os braços. Não fomos votar no referendo do aborto. Comprámos, por fim, a casa. Crescemos entre a abundância parola dos centros comerciais e o medo do risco, esse legado de uma ditadura tão insuficiente como pacóvia, que se agarra a nós como um polvo durante o cio. Portugal: o país de rabo entre as pernas, pobre, mas que se comporta como novo rico. Tivemos professores obsoletos que anunciavam que nunca dariam mais de doze valores num exame, deixámos de acreditar que o mérito abre caminho, passámos a vida a empurrar elefantes na areia para chegar a algum lado. Num conciso exercício de clarividência, o presidente da Liga de Futebol descreveu-nos: “Somos muito resistentes à mudança.” – o país num cartão postal: futebol e pasmaceira.

Dizemos que, mais de um século após terem sido escritas, as análises de Eça de Queiróz ainda nos descrevem. Dizemos, sim, dizemos. E o que fazemos? Ouvimos Saramago explicar porque escreveu O Ano da Morte de Ricardo Reis. Conta ele que pegou numa frase do heterónimo de Pessoa – “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo” –, e quis perguntar ao seu autor se em Portugal, naquela década de 30, numa Lisboa fraca nas ambições, cinzenta nas caras e asfixiada no cérebro, bastava com estar contente diante do espectáculo do mundo, sem fazer nada. Eu pergunto: e hoje, basta? Será que ainda temos capacidade para perguntar, como a personagem idosa de Jack Nicholson, que entra na sala de espera do consultório do psicólogo e questiona: “Is this as good as it gets?” Em todo este tempo, do D’Artacão à Luciana Abreu, do Pinheiro de Azevedo ao Santana Lopes, do telefone de disco ao telemóvel com raio laser, parece-me que alguma coisa se nos escapou, que alguma oportunidade se perdeu, que pedimos para sair do barco e fomos para casa, onde se está muito mais confortável.

Com a crise nasce a oportunidade – de meter um fundo a este fundo. Chega de justificar qualquer falha com: Isto é Portugal, pá. Seja o café que vem frio, o dinheiro que desapareceu do banco ou a impunidade sem vergonha, não queremos ouvir mais a desculpa: Isto é Portugal, pá. Não serve. Vocês deram-nos a liberdade, o ensino superior democratizado, os empréstimos à habitação. Nós agradecemos. Já não precisamos de cavar a terra para comer. Obrigado. Temos o essencial para dar o passo seguinte e não temos medo de assumir as nossas insuficiências. Não temos complexos de inferioridade. Sabemos que há muito que fazer. Mas queremos mais que um carro desportivo, e o maior centro comercial da Europa, e telejornais de hora e meia. Também já não somos fatalistas, nem desgraçados, nem nos resignamos diante da tristeza como se fosse uma marca genética. Isso, acreditem, já não nos diz nada.

Em breve, caso a depressão económica nos arrase, deixaremos de ter subsídios de férias, e segurança social, e ar que se respire. Em breve talvez sejamos mais frugais, mais sensatos, obrigatoriamente mais activos – a necessidade apura o engenho. Precisamos muito desta crise. O Empire State Building foi construido durante a depressão dos anos 30. Picasso estava exilado na capital francesa quando Franco deixou que a força aérea alemã incendiasse uma aldeia no País Basco. Depois, Picasso pintou Guernica. O trabalho de Nelson Mandela, por exemplo, não foi nada facilitado pelos 27 anos que passou na prisão. Mas a sua perseverança durou muito mais que esses 27 anos de cela. Dizer que os tempos de crise estimulam grandes ideias e mudanças não é fazer nenhuma descoberta inédita. Os homens precisam de superar as suas circunstâncias – muito bem explicado (e tão duramente) na frase que Orson Welles acrescentou ao guião do Terceiro Homem, escrito por Graham Greene: “Em Itália, durante os 30 anos dos Bórgias, houve guerra, terror, sangue, mas produziram o Miguel Ângelo, o Leonardo Da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, houve amor fraternal, 500 anos de democracia e paz, e o que produziram? O relógio de cuco.”

Não queremos guerra nem sangue. Mas queremos o tempo que nos pertence. Sim, também temos culpa, também já confundimos o que é essencial com o que é assessório, já conduzimos bêbedos, já nos drogámos mais que a medida, já fizemos demasiadas coisas pela metade, já preferimos o conforto inconsequente ao prazer de fazer o que realmente gostamos. Houve dias, meses, anos, em que não crescemos quase nada. Mas um país que se está a cagar para tudo é um país de merda. E nós não queremos viver na latrinas. Vem aí a crise – é a nossa chance. Sabemos que estamos melhor preparados, sabemos que temos a força nas pernas, a resistência no coração e o brilhantismo na cabeça. Este momento é nosso, saiam da frente. Vamos ser melhores políticos, melhores pais, melhores cidadãos. Seremos muito mais exigentes, simpáticos, curiosos, divertidos, disponíveis, ambiciosos, inconformistas. Deixaremos de encolher os ombros quando nos responderem: Isto é Portugal, pá. Não seremos indulgentes, nem passivos, nem mandriões. Não precisamos de ser os melhores da turma. Mas queremos chegar a casa, ao fim do dia, e dizer: Fizeste bem, amanhã há mais. Fighting the fight, percebem?

Há quase oitenta anos o amigo de Grouxo Marx matou-se com um tiro na cabeça e evitou assim cruzar uma década de depressão económica e a grande guerra que se lhe seguiu, enfim, uma vida inteira. Há quase dez anos um venezuelano com um frigorífico às costas decidiu enfrentar o caminho para diante sem família, sem nada. Qual destas duas histórias nos convence mais? Qual é a nossa resposta quando a tragédia ou a crise ou conformismo tornarem as nossas vidas insuportáveis?

Sabem quais foram as últimas palavras do amigo de Grouxo Marx, ao telefone, antes de disparar a pistola, referindo-se ao descalabro da bolsa? “The joke is over.” Também aqui chegou o tempo de se acabar com a palhaçada. O que ainda nos falta fazer começa, exactamente, agora.

5 comentários:

Violet disse...

Parabéns pelo post.
E, entre tantas palavras de autocomiseração espalhadas por aí, sabe bem ouvir as tuas.

E, fazendo parte dessa tal geração pós 25 de Abril, nunca lutei pela nação, nunca queimei soutiens em praça pública nem hastiei bandeiras.
Mas nem por isso, em algum instante, senti a minha vida facilidada (pela guerra espiritual que descreves? Talvez..)
Sempre acordei às 6 da manhã. Pago impostos. Todos. Não fujo ao fisco. Trabalho para o estado. Por amor imenso ao que faço. Saio 2 h mais tarde do que devia. Poupo dinheiro para a reforma. Conduzi (durante tanto tempo) um AX a gasóleo para poupar gasolina (eram uns maravilhosos 4L/100).
E se os meus luxos passam pelo cinema no Monumental às 5ª feiras e uns sapatos da Miss Sixty quando recebo o dito subsídio, há algo em mim que diz que conseguirei viver sem eles.
Não tenho medo da crise. Tenho medo de não poder fazer nada mais para que o rumo seja diferente.

(Não me identifico com a população que descreves. Porque no meio das latrinas existem os outros....)

Unknown disse...

Spot on baby.... brilliantly put. :)
E o teu venezuelano não deixa de me lembrar a fénix, animal forte
e poderoso, a carregar às costas uma carga de peso, o da eterna esperança.

Nikita disse...

Não comento o texto, que embora ingénuo, está bom. Prefiro comentar os comentários. O caso da Violet vai de encontro à realidade burguesa pós 25 de Abril, nota-se que a consciência lhe pesa e tenta justificar a sua vidazinha fútil, sem ter eventualmente compreendido o texto. Parece-me que o individuo Hugo G. se refere mais a uma revolução social, uma mudança radical na sociedade, o que está certo hoje não é necessário o que é bom: trabalhos das 9h às 17h, obrigatoriedade de picar ponto, pagar os impostinhos todos, ser muito bom cidadão. Isso é lixo, esse sistema tem de ser destruído, senão o que sobra é apenas o encarneiramento das massas, para os espertos viverem bem e à conta(BNP) por ex, que é gentalha do PS/PSD.
Quanto à Miss Gordon, deixa uma mensagem bonita. Quem não tem medo, quem não se acomoda, progride. O caminho é o da revolução, vote em branco!!

terezinha disse...

Não consigo concordar com os comentários...(excepto da Violet)
Consigo concordar com o seu texto, no geral.Parabéns.

Sou da geração do antes do 25 de Abril. (Tenho 57 anos.)
Lutamos muito. Muito mesmo.
Para vos dar uma vida melhor.

Se não a sabem aproveitar, que fazer?
Acho que a maioria se acomodou, se está nas "tintas"...
O problema agora é vosso!
São vocês que têm de criar um mundo com as condições justas para os vossos filhos.
Repito: se não sabem, melhor,se não querem aproveitar...

Pulha Garcia disse...

Acho o texto interessante. Não concordo com tudo. A parte geracional está simplificada. Contudo concordo com o essencial. Há que reagir. Vivermos em crise não é desculpa para sermos a crise.