segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O herói clássico


(Texto publicado no Semanário Económico de 24 de Janeiro)


Quando o pugilista Cassius Clay, com 22 anos, ganhou o seu primeiro título mundial, gritou: “Eu abanei o mundo, eu abanei o mundo!” No dia do combate, em 1964, meses após o assassinato de John F. Kennedy e da esperança destroçada dos americanos, Cassius Clay era um negro que crescera no sul do Estados Unidos, lugar de cruzes em chamas do Klu Klux Klan, e que, convertido ao islamismo, estava prestes a mudar o nome para Muhammad Ali, num país que ainda hoje põe o presidente a jurar com uma mão sobre a bíblia. O mais jovem campeão do mundo de sempre tinha, portanto, propriedade para afirmar que abanara o mundo.

Barack Obama podia ter dito, no seu discurso de tomada de posse, que também ajudara ao estremecimento do planeta, porque, como explicou num discurso em 2004, na convenção do Partido Democrata, onde nem sequer era cabeça de cartaz, “A minha presença neste palco é bastante improvável. O meu pai era um estudante estrangeiro [nos Estados Unidos], nascido e criado numa pequena aldeia do Quénia. Cresceu a ordenhar cabras.” Nos vinte minutos seguintes, Barack Obama cruzou a sua narrativa familiar com a história do país. Não apenas os factos cronológicos, mas a emoção que está no coração desses factos: a avó materna que, sozinha, criou uma filha enquanto o avô de Obama desembarcava na Europa vestindo um uniforme do exército americano; o pai de Obama negro, a mãe branca: “Os meus pais não partilhavam apenas um amor improvável, partilhavam uma fé duradoura nas possibilidades desta nação. Deram-me um nome africano, Barack, acreditando que, numa América tolerante, um nome não é uma barreira ao sucesso”. E esta foi a narrativa de Obama até ganhar as eleições, a narrativa da “esperança de um rapaz magrinho, com um nome estranho, que acredita que a América também tem um lugar para ele.”

Obama e Ali partilham a improbabilidade das suas vidas, uma improbabilidade que resulta da viagem esforçada dos seus protagonistas. “Yes we can” – “Sim podemos”, foi o que disse Obama quando ganhou as eleições primárias do Iowa, tornando essas três palavras no mantra da sua campanha.

Na dramaturgia, esta viagem chama-se o arco da personagem, um arco que, no final, tem de causar mudanças no protagonista. Em 1992, a campanha de Bill Clinton criou aquele que é considerado um dos melhores anúncios políticos de sempre, “The Man from Hope”. Clinton nasceu em Hope (esperança), e a narrativa da sua viagem era a de um rapaz pobre que teve a esperança de ser presidente. Num programa da BBC, Philip Gould, conselheiro de Tony Blair, explicou: [Depois de Clinton] as pessoas diziam: ‘Precisamos de uma narrativa, o que precisamos é de uma explicação para o que se está a passar, e que dê sentido aos acontecimentos’”. Os humanos têm o impulso inato para organizar as suas vidas em forma de um conto clássico. A narrativa serve para dar sentido à vida. E alguns políticos, como Clinton, souberam aproveitar essa necessidade com maestria, procurando o arco perfeito.

Richard Maxwell, consultor americano de uma companhia cujo lema é “história como estratégia, a narrativa como forma de liderança”, disse nesse mesmo programa da BBC: “As histórias têm cinco elementos: a paixão com que se contam; um herói, que fornece um ponto de vista ao ouvinte para que este faça essa história a sua história; um problema, que o herói tem de enfrentar; um momento de tomada de consciência, que permite ao herói ultrapassar o obstáculo; e a mudança que daí ocorre.”

Durante a campanha, Obama tinha, sem dúvida, paixão no desempenho da sua oratória. E, sendo o herói, conseguia com a sua história pôr o público a fazer a mesma viagem que ele fez. O problema era representado por todas as adversidades que superou: um homem negro e a sua luta; um país em estado letárgico, com medo, controlado por um governo, de George W. Bush, que cometia demasiados erros e os varria para debaixo do tapete com exercícios de propaganda. O momento de consciência aconteceu no Iowa, durante o discurso “Yes we can”, depois de Obama ganhar essas eleições primárias: “Disseram que este dia não aconteceria, que os nossos objectivos eram demasiado altos, que este país estava demasiado dividido (...) para se juntar em redor de um propósito comum (...), mas neste momento determinante da História, vocês fizeram o que os cínicos disseram que não conseguiríamos fazer”. Depois da tomada de consciência, surgia o derradeiro obstáculo e a possibilidade da mudança que o arco da personagem exige, neste caso, a presidência dos Estados Unidos.

Muitas pessoas desconfiam da narrativa de Obama, dizendo que é tão vazia como a publicidade de um aparelho que faz crescer os músculos sem exercício físico. Mas a narrativa de Obama revelou-se mais que uma campanha da TV Shop. Com ela, mostrou que a política se pode fazer sem ataques pessoais e sem o dinheiro dos grandes lobbies. Conseguiu levar as pessoas a falar de política, a sair para a rua, a participar na campanha; empolgou jovens, conseguiu a maior participação de sempre numa eleições presidenciais, pôs a mudança em andamento, como quem prepara um pugilista para o combate do título mundial. Essa foi a principal conquista da sua narrativa: mudar a disposição, a mentalidade e o empenho de um país de 300 milhões de pessoas e, pelo meio, contagiar o mundo.

Agora, com os espíritos despertos, entrou no segundo acto da sua história, no qual o herói tem de fazer as escolhas mais difíceis, mesmo que isso represente sacrifício e perda pessoal. No seu discurso de tomada de posse disse: “De tanto em tanto tempo, o juramento [do presidente] é feito entre nuvens densas e tempestades raivosas. Nestes momentos, a América perseverou não apenas pela capacidade e visão daqueles que estão no topo do governo, mas porque Nós, o Povo, nos mantivemos fiéis aos ideais dos nossos antepassados, e verdadeiros diante dos documentos que fundaram a nossa nação. Assim foi. Assim deverá ser para esta geração de americanos.”
Obama não precisava da emoção de outros discursos, nem de gritar que tinha abanado o mundo porque essa parte da viagem tinha terminado: num edifício que foi construido por escravos, um homem negro tornou-se oficialmente no presidente dos Estados Unidos.

Com o seu discurso de tomada de posse, Obama estava determinado em iniciar o segundo acto da viagem. Falou do passado para provar que o país tem as ferramentas, e os americanos a capacidade, para enfrentar a crise do presente. Falou dos sacrifícios feitos durante guerras e depressões, disse que é preciso que os homens voltem a pensar num bem maior que eles próprios: “Chegou o tempo (…) de escolher a nossa melhor História; de carregar para diante essa oferta preciosa, essa ideia nobre, passada de geração em geração: a promessa de Deus de que todos são iguais, livres, e que todos merecem a oportunidade de perseguirem a sua medida de felicidade”.

No segundo acto, os trabalhos de Obama têm a dificuldade contemporânea dos trabalhos de Ulisses. Sobre a perfeita narrativa da Odisseia, António Lobo Antunes disse uma vez que se tratava da história de um tipo que avisa a mulher que vai chegar tarde a casa. Tendo em conta o tamanho da viagem que inicia agora, o presidente dos Estados Unidos está também a avisar os americanos, e o mundo, que, para superarmos as nossas circunstâncias, teremos de chegar tarde a casa.

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